30 janeiro 2012

Não ir mais para Pasárgada



Lya Luft

Eu já estava de malas prontas: ia pra Pasárgada — para quem não recorda, ou nunca soube ,é o reino feliz inventado por Manuel, o Bandeira, onde ele iria dormir com a mulher escolhida, na cama do rei.
Bandeira, o nosso, foi um poeta maravilhoso. (Gosto dessa palavra embora ande tão banalizada. Se a gente olhar ou escutar direito, ela ainda diz alguma coisa —e é boa, e forte.)
Lá não tem noticia ruim, desgraça, acidentes, politicagem nem deslealdade. Lá crianças não comem lixo. Lá não existe homofobia, nem declarada nem sutil, lá não se precisa ser competente nem brilhante, ou atleta sexual, ter os melhores cartões de credito, o carro mais potente, o apartamento em Londres ou Paris.

Lá também não há instituições, e se houvesse, funcionariam.
Lá basta ser gente.
Para lá eu quis escapar deste reino das frases infelizes e atitudes grotescas, dos reis feios e nus, das explicações cabotinas, da falta de providências e de autoridade, da euforia apoteótica de um lado, e da realidade tão diferente de outro. Do que nos ronda insuspeitado ou faz caretas na nossa janela, e a gente não acredita, nem se mexe, se ficarmos quietos o fantasma desaparece e o diabinho recolhe o rabão.

Eu ia embora porque enjoei da repetição obsessiva de fatos que provocam insônia no noticioso da noite e náusea no café da manhã. Ia partir sem endereço, sem telefone, sem e-mail. Levaria comigo pássaros, crianças, e esta paisagem diante da minha janela (com nevoeiro, porque aí é de uma beleza pungente).
Levaria família, amigos, livros, música e o homem amado.
Na minha nova e mágica terra eu tentaria não escrever mais sobre o que por estas bandas tem me angustiado ou ameaça transformar-se num tédio: sempre os mesmos assuntos? Só mencionaria o que faz a vida valer a pena: as coisas humanas, bons relacionamentos, escolhas positivas, alegria, vida e morte, e o mistério de tudo.

Talvez escrevesse sobre a dor (mas uma dor decente).
Sobre grandes ou pequenas vitórias, como quem deixou de beber ou de se drogar, quem teve coragem de ter um filho, quem sentiu a glória de se apaixonar com mais de sessenta anos, quem conseguiu abraçar um pai, um filho, a mãe que estava afastada.
Nem problema de transporte eu teria: para Pasárgada se viaja com o pensamento. Ainda bem, pois de avião estava sendo loucura e risco —- ainda outro dia vi num aeroporto um simples pai de família com uma criança nos braços e outra dormindo no banco a seu lado, que, estava lá há quase 24 horas, e, entrevistado sobre aquele desconforto, respondeu: “A casa já caiu, temos de nos conformar “.

Pois eu acho que nem precisamos nos mudar de estado ou país, nem devemos nos conformar. Resignar se é ajudar a implantar o caos e a negligencia generalizada; a passividade é uma dessas alegrias falsas, que a gente devia questionar. Roubaram meu carro, não minha vida; mataram meu amigo, não a família toda: por trás desses comentários, que não inventei, espreita uma resignação maligna, que colabora com o mal que nos fazem.
É para rir ou para chorar? Ora rimos, ora choramos, esse é o novo jeito de ser.
Não em Pasárgada.

Para onde eu também levaria as minhas velhas crenças de que não somos totalmente omissos ou sem caráter, portanto este mundo tem jeito—embora às vezes eu não tenha muita fé nisso.
Uma dessas crenças é que a gente pode, sim, ser feliz. A gente pode até se vingar de toda a chatice, a grossura, a crueldade e angustia, - sendo feliz.
Lembro a história da filha adolescente de um amigo, que, rejeitada pelo namorado, passou uns dias em profunda tristeza, mas de repente apareceu na sala, perfumada, olhos brilhantes, pronta para sair. O pai interroga: Ué, filha, voltou com seu namorado? Resposta de inesquecível sabedoria: Não, pai, eu vou me vingar sendo feliz.
“Feliz?” dirão os céticos, os cínicos ou os simplesmente realistas. Pessoas mais graves e sensatas do que eu.

Quero explicar: é às vezes só um relance, uma sensação de estar em razoável harmonia consigo, os outros, o mundo. Pode ser aquela música escutada sem saber de onde veio, a chuva que cai depois do trovão. Pode ser o trovão. Pode ser a pele incrivelmente doce de uma criança, uma voz amada nos chamando, o filho que nos telefona sem maior motivo do que saber como a gente vai, alguém conhecido na rua que nos abre um sorriso.
Poder dar o pão e o leite para os meninos, botar flores na mesa, trazer um perfume novo para a mulher, preparar um prato especial para o marido.
Curtir a natureza e saborear a arte, atender aos necessitados, preparar crianças e jovens para a vida, cultivar gentileza e carinho na família, olhar para dentro de si mesmo e escutar seus desejos e sonhos, e respeitar seus limites, tudo isso é um bom começo.

Talvez seja uma saída. Não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar nossa postura nele.
É trabalho de formiguinha, eu sei: abrir-se para o que existe de positivo. Pois a gente pode descobrir ou inventar as coisas positivas, ainda que em alguns lugares, com algumas pessoas, ou escondidas em nós, para usar algumas vezes. Uma pequena Pasárgada em cada um.
Nossa liberdade, aqui onde não é Pasárgada, é obrigação de escolher: abro os olhos, não abro? Como essa comida, não como? Saio de casa, não saio? Vou no meu carro, ou, por causa da segurança, chamo um taxi? Telefono, fico calada, mando um e-mail ou risco da lista de meus endereços? (O coração sempre foi meu pior conselheiro).

Sou boa sou má, sou verdadeira sou desonesta, sou lúcida sou louca, cresço ou permaneço, amo ou abandono, ajudo ou torturo—–e assim, com o leque das possibilidades, me foi dado o tormento das opções. Digo sim ou digo não, ou simplesmente fujo — quem sabe para essa terra perfeita que Bandeira inventou?
Mas na última hora decidi ficar.

Pois, fugindo, eu me sentiria como quem deserta um grupo com o qual tem laços muito fortes: meus leitores. Os que me acompanham e os que pensam diferente, até os indignados— às vezes por terem lido algo que nem estava ali, ou porque eu de verdade escrevi bobagem, falei no que não sabia direito. Todos são importantes para mim. Afinal somos irmãos, filhos desta realidade que pode ser quase igual a uma Pasárgada inventada.
Vou me vingar da chatice, da violência, das traições, da burocracia e da corrupção instalada, sendo feliz aqui.

E quando tudo me aborrecer de verdade, quando eu ficar cansada de minhas neuroses e manias, quando as pessoas estiverem demais distraídas, a paisagem perder a graça, a mediocridade instalar seu reinado e anunciarem o coroamento da burrice, — vou espiar o letreiro que fala de uma riqueza disponível para qualquer um, e que botei como descanso de tela no meu eternamente ligado computador:
Escute a canção da vida.

Lya Luft

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