21 fevereiro 2018

Deuses Americanos – de Neil Gaiman



A inquietação tem motivado a humanidade a atribuir valores a tudo aquilo que foge da sua compreensão. Em meio ao caos imposto pela dúvida, tudo o que era desconhecido precisou ser nomeado, pois conceituar esses eventos foi à maneira encontrada por nós para dar um crivo ao que nos cercava, fazendo o impensável ganhar algum sentido. As palavras passaram então a carregar a significância esperada por nós. Isso acontece a gerações, a principio com os fenômenos naturais, a chuva, os ventos, os raios, etc. Depois outros ícones foram sendo criados sob o mesmo julgo do passado, ora erguendo grandes impérios, ora os destruindo, ora exaltando a glória de heróis míticos, ora divinizando-os. A forma meticulosa de como isso se deu recebe o nome de mito, o qual não é capaz de ser esclarecido pelos olhos da razão, pois ele faz parte do campo sagrado criado por nós homens para dar sentido ao que escapa de nossos domínios. Por essa razão, o mito é tão antigo, porque remonta ao âmago das criaturas, antes primitivas, que agora civilizadas, dão outros sentidos aos mitos.
Em Deuses Americanos, Neil Gaiman cria uma interessante obra de fantasia para nos explicar que muitos dos mitos de ontem permanecem entre nós, esgueirando-se em busca de espaço, após serem postos de lado pelos “deuses modernos”. Mesmo não morrendo definitivamente, eles ganham outras acepções de acordo com as necessidades daqueles que os cultuam. Por se passar nos EUA, a obra enfoca o descaso que houve com todos os povos vindos à América, suas culturas, tradições e, claro, seus mitos, muitos dos quais praticamente destruídos, outros renegados e boa parte incorporados pelo novo mundo. Estes últimos sobreviveram como todos os outros seres míticos sobrevivem: porque atendem as exigências de um povo que necessita de algo maior para acreditar. O mito também é a prova de que há algo de vital em nós que não duraria sem o apelo aos mitos. São eles que nos mantém vivos, dando relevância a nossa estada no mundo.
 
Em contrapartida, mesmo subsistindo no mundo moderno, os deuses e deusas antigos agora se veem obsoletos, porque a humanidade idolatra outras figuras mitológicas, vistas pelos anteriores como de menor sacralidade. O embate entre esses deuses parece ser inevitável. Novas e velhas deidades fazem da terra o campo de batalha para disputar a hegemonia da devoção dos humanos. O astuto Wednesday é o personagem criado por Gaiman para aguçar essa possível batalha. Sendo um deus antigo, ele teme que os novos o substituam por completo. Então, ele escolhe Shadow, um mortal recém-saído do presídio, a ser o parceiro dele numa espécie de convenção de deuses do passado. Para o leitor, Shadow não parecia ser a melhor escolha. Incrédulo, distante e perdido, em muitos momentos da narrativa, ele dúvida dos acontecimentos inexplicáveis a sua volta, não sendo capaz de traçar uma justificativa racional para àquelas ações mágicas. Mas, foi esta a intenção de Gaiman, escolher um indivíduo cujo perfil moderno se diferencia pelo desapego ao sagrado, algo ampliado a muitos outros seres humanos na atualidade.
 
Com um olhar crítico, Deuses Americanos questiona a mudança de paradigma vivenciada pelos mitos com o passar doa anos. Os seres imaculados do passado, que regiam a vida na terra a partir da sua própria vontade, agora não são mais invocados nas preces humanas, nem recebem oferendas através dos agradecimentos pelas bonanças vindas do céu. Não são mais cultuados nas datas costumeiras, tão pouco suas histórias são recontadas as novas gerações, que cada vez mais os desconhecem. As celebrações, festivais, banquetes e sacrifícios praticamente foram instintos, dando lugar a singelas manifestações de respeito pela existência de entidades que governavam os episódios de outrora. Em seu lugar, outros deuses tangíveis passaram a ser venerados: o deus da mídia, da internet, da tecnologia, da música, dos automóveis, e tantos outros divinizados pelas novas práticas iconoclásticas da vida moderna.
 
Vendo a quase completa deterioração dos deuses antigos, mesmo sabendo de sua importância, surge um sentimento de pesar ao perceber a descartabilidade a qual criamos e nos desfazemos dos símbolos. Esse ímpeto partidário aflora depois de ler Deuses Americanos e compreender como o nosso egoísmo se apropria do sagrado que criámos, mas não titubeia em recusá-lo quando outra divindade é elaborada ou reconstruída para nos servir. Somos tão patéticos, nesse sentido, que sem os mitos dificilmente a soberania humana seria uma realidade. Foram os diversos deuses e deusas que construímos que nos permitiram chegar até onde chegamos, impondo-nos limites às nossas ousadias, determinando para onde íamos depois da morte ou explicando o porquê de nossas privações em vida. Cada passo, cada tomada de decisão, cada desafio, tudo só foi possível graças aos mitos que originamos das nossas necessidades para transcender as nossas incontáveis limitações.
 
Por ser produto da criatividade humana, o mito recebeu centenas de outros significados, muitos deles, porém, tentaram minimizar a essência do mito: chamado de religião, crença, fábula, lenda, alegoria, símbolo ou metáfora, todas essas palavras cabem dentro do bojo mitológico idealizado antes mesmo do homem dar seus primeiros passos no universo. Mesmo que tentem esvaziar a palavra mito do seu sentido original, ela continuará soerguendo-se frente à insuficiência de outro conceito capaz de satisfazer as carências humanas. Gaiman conscientemente faz isso ao propor a insurgência dos deuses antigos contra os novos. Talvez, num primeiro olhar, pareça que a intenção do autor é aniquilar uma das partes. Quando na verdade é apenas o oposto disso. Ao soerguer deuses atemporais dos mais frívolos da atualidade, a obra evidencia também a maleabilidade do mito, que pode assumir inúmeras facetas da vida, sem necessariamente ser chamado como tal. Então, sem plena noção disso, continuamos a ser guiados por mitos e fingimos que estes tem outro nome, uma mentira confortável nutrida por séculos.
 
Seja como for, os mitos não morrem. Estão vivíssimos entre nós, determinando nossas ações cotidianas mais ou menos como se fazia nas primevas civilizações. O que talvez tenha morrido foi seu caráter sacro, bem como todas as atitudes destinadas ao divino. Entretanto, isto não descaracteriza o poder de influência exercido pela mitologia em nossas vidas. Continuamos buscando ícones para expandir os nossos limites, ao passo que elaboramos cada vez mais totens para preencher esse nosso constante vazio existencial. Tem funcionado, pelo menos a curto prazo. Pelo visto, pouco mudou das práticas mitológicas antigas das atuais, a não ser a rápida variedade de deuses que vem e vai, o que se justifica pela celeridade da vida moderna. Fora isso, Deuses Americanos, além da crítica mordaz a formação dos EUA, cutuca todo esse novo mundo que foi unificado pelos mitos contemporâneos, através da massificação do poder financeiro. Lendo esta obra de Neil Gaiman, faz ainda mais sentido a célebre frase de Fernando Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”.

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