21 fevereiro 2018

Dias de Abandono – de Elena Ferrante

 
Seja qual for à fase da vida, ser deixado por alguém que amamos é doloroso. Toleramos com muita reserva quando essa ausência se dá por razões alheias a nossa vontade, como é o caso da morte. Mesmo nessas horas, é difícil consentir ao outro o pleno direito de seguir adiante. Em vida, porém, apartar-se daquele do qual nutrimos certo sentimento é bem mais complexo, sobretudo quando a relação é entre casal, constituída de um lar e com crianças envolvidas. Então, quando tudo parecia estar em plena normalidade, eis que uma das partes se manifesta dizendo que não dá mais para continuar, que tudo está acabado, que não é possível manter tal relacionamento, enquanto do outro lado o ouvinte, chocado e perplexo, questiona-se o porquê de repentina decisão unilateral. Casos assim são rotineiramente comuns nos relacionamentos a dois, abalando aquilo que se mostrava teoricamente consolidado.  Ficam, então, os questionamentos: por que agora? Por qual razão? Se não havia intenção de perdurar, porque chegou até onde chegou?
Dias de Abandono, de Elena Ferrante, não se propõe, a priori, a responder tais questões, mas em analisar a ruptura inesperada que há numa relação estável de 15 anos e as implicações que isso resvala para uma das partes, neste caso a protagonista Olga. Casada, com dois filhos e um cachorro, ela é surpreendida pelo marido Mário, quando este, numa tarde de abril, como bem pontua a autora, afirma que vai deixá-la sem razão aparente. Olga, atônita com a notícia, chega a duvidar do que foi dito pelo seu esposo, revirando o passado do casal em busca de outras ocasiões das quais ele pensou em desistir da relação, e voltou atrás. Entretanto, com o passar dos dias, a frieza com que ele passa a tratá-la faz com que as dúvidas de Olga rapidamente desapareçam. Diante dessa inesperada fase em sua relação, ela tenta, em vão, interpelar Mário sobre as razões de sua decisão, mas ele continua evasivo e distante, como se algo de cumulativo tivesse feito com que sua tomada de decisão fosse irrevogável.

Diante da certeza do abandono, seus dias passam a ser um misto de frustração, medo, dúvida e cólera. Ela, que até então era uma mulher extremamente educada, de fala e gestos taciturnos, se vê irreconhecivelmente ensandecida, sem controle sobre aquilo que diz e das ações que realiza. Esgueirando-se para o fundo do poço, utiliza de todas as artimanhas possíveis para reaver a relação perdida, mas, a cada tentativa, se vê ainda mais humilhada pela rejeição do marido. Fracassada, visivelmente perturbada e desorientada, as primeiras vítimas de seu desequilíbrio são os filhos. Por serem ainda crianças, absorvem fatalmente o clima de violência criado em casa por aquela separação imprevisível. Além delas, amigos do antigo casal, vizinhos e até o cachorro da casa, não escapam das inevitáveis retaliações de Olga, inconformada com o injustificável término do seu casamento, que para ela, àquela altura do campeonato, seria até o fim da vida.
Até então, não parece nada de novo. A temática vivida pela personagem foi repetidas vezes utilizada em diversos outros romances ao longo da história. O que diferencia Dias de Abandono são sua narrativa e a construção psicológica da protagonista. Para quem leu este livro, depois da primeira frase, é praticamente impossível fechá-lo. É como se estivéssemos abandonando a própria Olga pela segunda vez, potencializando seu sofrimento, renunciando a chance dela de se reequilibrar, ao mesmo tempo, torcendo para que ela dê uma reviravolta mirabolante em sua vida. Ficamos presos ao penoso mundo que ela passou a criar. Além disso, as constantes crises que ela vivencia nos fazem incorporar a sua dor, extraindo de nós uma identificação quase como um furto, que só percebemos quando nos damos conta que nos subtraíram algo de importante. Dias de Abandono apresenta, sem percebermos, a empatia que desconhecíamos daquela personagem, ao ponto de lamentar junto com ela, sofrer com ela, reconfortá-la e torcer para que ela supere todos os dissabores da separação.

Tamanha sintonia não se dá à toa. A escolha de uma protagonista, com filhos, deixada subitamente pelo marido, diz muito do momento feminino em várias partes do mundo. Antes, a naturalidade que tais abandonos ocorriam não deixava espaço para problematização. Porém, com as merecidas conquistas das mulheres em diversos âmbitos, passou-se a se questionar o papel delas dentro das relações conjugais, desde as relações abusivas, excessos de obrigações, renúncias, desejos e a falta de entendimento que ainda persiste para com as questões femininas, sobretudo quando há crianças, carreira e feminilidade envolvidas. O pseudônimo de Elena Ferrante não foi o bastante para maquiar sua clara intenção de fazer de sua obra uma ode aos dilemas das mulheres modernas, ferozmente discutido pelos inúmeros movimentos feministas. A mulher que é abandonada com filhos para criar, sem emprego, vivendo às custas do ex-marido, perdendo aos poucos a vaidade por estar imersa nas tarefas domésticas, que agora são exclusivamente dela.
Esta tomada de reflexão é evidente na obra de Ferrante, mas não tira sob hipótese alguma o peso de sua narrativa. O brilhantismo de Dias de Abandono consiste em tocar na ferida, remoê-la ao ponto de nos sentirmos machucados como a protagonista, ao passo que vemos a nossa parcela de culpa, enquanto sociedade, por permitir de alguma forma que casos desse tipo se naturalizem. Neste ínterim, o livro vê no abandono um problema, a partir do momento que não entendemos que as relações conjugais são frágeis e podem ruir a qualquer instante. Ao invés disso, porém, acreditamos piamente na versão eterna das relações, torcendo num final feliz que raramente ocorre. Estar com alguém é também estar disposto a ser deixado por esse alguém. Logo, é preciso ter discernimento antes de se aventurar num relacionamento a dois e não deixar escapar a hipótese de uma ruptura inesperada. É sempre bom lembrar que estar com alguém não significa nos anular.
 
Entretanto, quando nos boicotamos, perdemos o controle da relação e não distribuímos igualitariamente os encargos que surgem quando estamos juntos. No geral, ainda é a mulher é carregar os maiores fardos. Foi dessa carga que Elena Ferrante veio esvaziar desde o início: o machismo vigente em nossa sociedade é tão desmedido, que precisa ser constantemente desentranhado das profundas raízes em que foi semeado para que significativas mudanças ocorram de fato. Por isso, quando a literatura moderna se destina a elaborar verossimilhanças dessa natureza, o que se espera é uma mudança radical no pensamento do leitor, sobretudo aqueles avessos aos pensamentos mais humanísticos. Caso isso não aconteça, a simples leitura de Dias de Abandono suscitará um bom debate sobre os reais papeis que homens e mulheres assumem dentro de um relacionamento, e como cada um deles precisa encarar a responsabilidade de estar com o outro ou de deixá-lo partir, sem que se deixe um rastro interminável de incertezas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário