10 abril 2018

PRECISAMOS ESCUTAR O ENEM





Definitivamente é a imprevisibilidade que compõe a prova de redação do Enem. A deste ano ratifica este meu pensamento ao trazer um tema imprevisto por vários profissionais, alunos e entusiastas redacionais. Intitulado como os "Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil", tal tema marca a consolidação de uma mudança nesta prova ocorrida desde 2014, quando o tema sobre publicidade infantil serviu de pano de fundo para discussão textual. Além de deixar mais do que claro que a banca de agora em diante pode trazer qualquer temática para além dos clichês previsíveis, os quais estampam sites, blogs e aulas de redação.
            Para quem tratou em sala de aula a respeito dos deficientes físicos, bem como de inclusão educacional, possivelmente ofertou aos alunos algum subsídio para a construção de um texto correlacionado ao tema 2017. Felizmente, uma das minhas apostas deste ano se referia ao universo dos deficientes físicos, mas não esperava que o Enem especificasse qual seria a deficiência. Foi o hipônimo destacado do hiperônimo. Entretanto, dentro do bojo trabalhado em sala, há inúmeros argumentos facilmente encaixáveis no que foi exigido pela prova, sobretudo aqueles que explicam as dificuldades de ser deficiente no Brasil.
            Em 1985, se não me engano, foi o ano instituído pela ONU como o de discussão a respeito dos deficientes, um marco na história desses indivíduos muitas vezes esquecidos pela sociedade. Para além disso, o encontro de várias nações em Salamanca também merece ser destacado como episódio marcante na trajetória dos deficientes. Bem lá atrás, porém, há marcas mais profundas de total eliminação, se tomarmos como base Grécia e Roma Antigos, sobretudo a primeira em cidades como Esparta, onde quaisquer imperfeições eram sacrificadas como prática cultural daquela civilização.
            Dentre as muitas dicotomias históricas das quais os deficientes foram vítimas merecem destaque a utilização deles para experimentos nazistas e a exaltação dos soldados americanos mutilados no mesmo período de guerra. Fruto disso, houve lentas e significativas mudanças em prol dos deficientes. As técnicas relacionadas a fisioterapia, terapia ocupacional, dentre outras correlatas começaram a surgir pós holocausto. Espaços de deficiência e não para deficientes, conhecidos como Upias, começaram a ser discutidos. A idealização de um Desenho Universal, termo que designa espaços voltados a inclusão de quaisquer pessoas, inclusive os deficientes, passaram a ser imaginados como mecanismos de inclusão.
            Tudo isso parcimoniosamente estava atrelado ao tema. Entretanto, ao trazer a surdez e a educação como norteadores da discussão, o Enem esperava maior dinamismo dos alunos. Como se sabe, a esfera educacional brasileira é falha no que tange o acesso desses indivíduos ao ambiente escolar. Falta pessoas capacitadas para inseri-los ao seio social. Numa sociedade que tem como herança o homem vitroviano de Leonardo da Vinci, qualquer imperfeição é ignorada e passa a compor as muitas negligências educacionais do país.
            Mesmo com a inclusão da matéria de libras nos cursos de graduação em Letras, não foi o bastante para atender a demanda desses indivíduos na sociedade. Então, desde a infância muitos surdos encontram entraves em receber uma formação educacional formal devido a carência de recursos, humanos e estruturais, capazes de atendê-los. Isso se prolonga na vida adulta, impedindo que estas pessoas possam percorrer os mesmos caminhos escolares/universitários dos não surdos.
Ademais, isto se dá por causa da ensurdecedora sociedade em que vivemos, onde qualquer comunicação que não se refira a fala é excluída.
            Por esse ângulo, o processo de formação educacional peca em não priorizar uma educação linguística mais completa, comprometida com a leitura, escrita, compreensão dos signos linguísticos e da fluidez em que eles podem se manifestar. Isso resvala diretamente nos surdos e sua linguagem comunicacional única. Sem acesso a este universo, cria-se um gueto onde os surdos ficam isolados da interação com o mundo considerado normal. Possivelmente, este seja um dos maiores empecilhos deste grupo, pois não se limita apenas aos deveres impostos pelo MEC, mas, sobretudo, de assegurar o acesso pleno a uma educação inclusiva de fato.
            A psicopedagoga Argentina Alicia Fernandez no seu livro a Atenção Aprisionada já advertia que estar em silêncio não é o mesmo que estar no silêncio, muito menos se calar. Habitar o silêncio para não silenciar. Paralelamente o cinema mudo de Charlie Chaplin, repleto de sons implícitos no jogo de linguagem pictórica, imagética e gestual, atestam à psicopedagoga. Outrossim, numa sociedade de falantes, os surdos são ainda mais emudecidos pela tagarelice social, o descaso político, a invisibilidade midiática, a falta de representatividade cultural e a herança de violência histórica da qual os deficientes, dentre eles os surdos, herdaram.
            Então, se o acesso à educação, assegurado pela Constituição, não é efetivado, temos um problema grave de inclusão, que fere diretamente os direitos humanos. Mais complexo ainda é tal ausência de direitos numa sociedade alicerçada pela fala como meio mais usual de comunicação entre os falantes. Então, o papel da AACD, como espaço voltado a cuidar desse público, bem como da própria esfera escolar, no que se refere ao ensino amplo de linguagem, precisaria ser alavancado, sobretudo na conclusão. É evidente que o governo e a precária difusão midiática/virtual sobre esse tema também poderiam ser responsabilizados pelo descaso para com os surdos. Além, é claro, da sociedade que não insere todos os seus membros, garantido a efetivação plena de todos os seus direitos.
            Passado o susto, o aluno deveria ter percorrido o caminho penoso do que é ser deficiente físico no Brasil relacionando à inclusão deles no universo educacional e suas barreiras. Nada de mais. Entretanto, além de alunos, nós professores, entusiastas e amantes de textos, precisamos escutar o Enem de agora em diante. A prova mudou a abordagem e não está se agarrando a clichês para satisfazer as expectativas dos muitos magos redacionais espelhados pelo país. Nada mais que o incerto guia esta prova. Entretanto, é possível enxergar em meio ao breu de temas dados ao longo do ano, se todos os envolvidos no processo redacional se comprometerem com a leitura intensa, ampla e desligada de apostas previsíveis. Quem fará isso estará mais que preparado para fazer qualquer temática trazida pelo Enem, mesmo que ela seja a mais "insana" possível.

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