23 maio 2018

Falar Consigo Mesmo é um Exercício de Autoconhecimento



Nem sempre conversar com os outros sacia nossos anseios. Por mais íntimos, dispostos e de confiança que sejam, muitos deles não compreendem a dimensão dos nossos problemas mais existenciais, ainda que se esforcem para preencher essa lacuna. Em tempos de não diálogo como os vividos atualmente, é cada vez mais raro encontrar alguém pronto para nos ouvir falar sobre nós mesmos, sem para isso dispor de julgamentos levianos a nosso respeito. Talvez apenas os profissionais de psicologia sejam os únicos a se sobressair nesse sentido. Então, quando o outro não está disponível ao diálogo, resta-nos aguardar um momento oportuno, torcer para que surja um indivíduo novo em nossas vidas aberto a nos escutar ou trabalhar a autorreflexão. Destas, a mais acessível é a última, mas ainda a menos usual. Não se trata de apenas sussurrar coisas para nós mesmos ou fazer isso silenciosamente através do pensamento. E sim falar em alto e bom som consigo mesmo, exercitando uma prática de autoconhecimento que pode nos ser valiosíssima.

Aprendi a relevância do monólogo interior da pior maneira possível. Como muitas outras pessoas, sempre que precisava de algum conselho, fazer um desabafo ou até mesmo trocar determinadas experiências, recorria, e ainda o faço, às pessoas que me são caras: familiares e amigos próximos. Todavia, a proximidade não ajudava a estreitar certos diálogos. Isto porque, muitas vezes o que dizemos não é bem recebido pelo outro, que trata de elaborar juízos de valor rasos sobre o que estamos passando/sentindo/vivendo. Logo, o que poderia ser um mecanismo de ajuda, acaba por intensificar os nossos dilemas internos. Ao perceber que o diálogo estava infrutífero, passei primeiro a questionar o meu falar. Será mesmo que estava sendo claro em minha exposição do pensamento? Cheguei à conclusão que sim, pelo menos na maior parte das vezes. O problema é que os outros que procurava para me auxiliar não estavam aptos a me orientar naquele momento e circunstâncias. Por isso, passei a me autoindagar, questionar-me sobre tudo e tentar responder a mim aquilo que os outros não foram capazes de dizer.

Entretanto, percebi nesse processo que a falta de abertura do outro nem sempre o coloca na posição de vilão. Fruto de um tempo avesso à conversa, as pessoas naturalmente são condicionadas a limitar o diálogo a breves trocas de palavras, sobretudo quando estas dizem respeito aos problemas alheios. Não há espaço para aprofundamentos nessa modernidade líquida em que estamos inseridos. Tudo é muito fugidio, inclusive os sentimentos humanos, suas dores e necessidades. É como se o que sentíssemos não fosse importante para assumir um caráter de urgência. Logo, ilhados em nossas crises existenciais, não compreendemos esse fenômeno maior: estamos todos doentes, depressivos, carentes de diálogo, perdidos em nossos dilemas mais profundos, sem ao menos ter a quem recorrer, porque o outro, patologicamente se encontra na mesma situação que nós. Todos temos nossos temores e lidamos com eles a partir de nossas experiências de vida. Dessa forma, é natural quando o outro nos pede alguma orientação, acionarmos nossas convicções de vida como parâmetro a ser seguido. Porém, nem sempre elas suprem a lacuna do outrem. Assim, a autorreflexão ajuda.

Para a minha surpresa, tem dado certo. Nos instantes em que consigo ficar sozinho, procuro o único instrumento que uso nessas conversações, o espelho. Ao me ver nesse reflexo, começo paulatinamente a dizer as primeiras palavras aquele que vive dentro de mim, mas que desconheço em completude. Os primeiros enunciados saem tímidos, como se temessem ferir aquele que vejo. Não demora muito quando uma enxurrada de versos penetra o diálogo. Mudanças bruscas de humor constituem essa linha tênue. Da timidez, passo a rir do que sou/fiz, então me vejo gargalhando e do nada caio em prantos copiosos, ao mesmo tempo em que falo ainda mais com o meu eu refletido. É estranho, ensandecido, mas, ao mesmo tempo, é intenso, verdadeiro, chega ao ponto de me tranquilizar e me traz respostas das quais não seria capaz de extrair se estivesse num diálogo com alguém. É perturbador confidenciar a nós mesmos os nossos problemas e se surpreender ao encontrar as soluções deles dentro de nós. Além disso, nos confere a oportunidade de aos poucos conhecer nossos alter egos em constante confronto.

A familiaridade com algumas pessoas, todavia, pode ser um empecilho para o nosso crescimento interior. Por questões de afinidade, laços consanguíneos e outras parentelas, esperamos que o outro nos diga o que queremos ouvir, saciando nossas dores. Então, quando o outro se mostra inapto a isso, nos causa uma frustração enorme, pois percebemos que aqueles de que nutrimos certos sentimentos não são capazes de nos dar uma palavra de conforto quando mais precisamos de amparo. Nesse momento, quando o diálogo consigo mesmo não é posto à prova, muitos indivíduos buscam outras alternativas, nem sempre seguras, de se comunicar com o mundo. Não é à toa que muitos encontrem nas drogas, lícitas ou não, na boemia, às vezes até na criminalidade, a chance de chamarem atenção para si. Há quem busque consolo na fé, inserindo-se em práticas religiosas para desatar os nós da garganta, numa conexão com o divino. Não nos cabe julgar qual é o caminho mais sensato, porque a individualidade humana é tão ou mais complexa do que a sua coletividade. Penso, porém, que temos que exercitar essa conversa com o eu antes que aquelas alternativas se façam necessárias.

Vistas de relance, atitudes assim parecem sem valor. Contudo, é impressionante a experiência de falar consigo mesmo. Temos a sensação de que há vários nós naquela imagem que criamos. Possivelmente, há. Nenhum de nós estamos sós encarcerados dentro de nossos corpos. Há outros coabitando nossa existência, buscando uma chance de se revelar para o mundo. O problema é que somos tão tolhidos de sermos quem somos que acabamos aprisionando outras faces nossas por medo de desagradar aqueles que nos circundam. Então, quando os problemas vêm, nem sempre dizem respeito ao que aparentamos ser, mas justamente aquilo que tememos ser. Por isso, não conseguimos encontrar muitas vezes respostas para as nossas dores dialogando com nossas parelhas, porque nem eles conhecem todos os nossos eus. Parece confuso, e é. Talvez eu esteja viajando demais ao falar sobre algo tão simples, mas temo que essa inquietação pode se tornar loucura se não for levada mais a sério. Precisamos aprender a falar com nós mesmos em alto e bom som, buscar nos conhecer e preparar um mapa pessoal para que os outros consigam trafegar melhor por nossas complexas rotas. Vai funcionar. Os diálogos futuros serão mais recíprocos, ao passo que nossas dores serão melhor compreendidas.

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