29 novembro 2012


"O mar azul e branco e as luzidias
Pedras: O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida".

Sophia de Mello Breyner Anderson

22 novembro 2012


“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome [...]”. A máxima anterior, versada pela cantora Adriana Calcanhotto, remete a múltiplas interpretações. Neste momento, porém, o foco da discussão não estará nas diversas cores que confrontam o nosso olhar todos os dias, mas na ausência delas, a qual cria uma ambientação de invisibilidade. Explicando melhor, ao andar pelas ruas, estamos diante de grandes telas, cenários e ambientes onde o colorido ofusca o nosso olhar para as cinzentas imagens menores, aquelas que sujam esquinas, pontes, avenidas e pequenos e grandes bairros de inúmeras cidades sem que percebamos. Na verdade, essa inexistência serve de palco para o estrelato da pobreza, em diversos papéis, ora protagonista, ora coadjuvante, mas sempre vista como antagonista social para os olhos de muitos.

As variadas facetas representadas pela pobreza encobrem o arco-íris de vida propagado pela sociedade de consumo, com seus outdoors e letreiros coloridos. Ao passar por diversas ruas, por exemplo, é comum vermos mendigos e pedintes na sua árdua peregrinação ao nada, seres estáticos no tempo, seja por abandono ou por falta de oportunidades sociais, as quais têm levado mais e mais indivíduos a viverem em situação de penúria. Próximo desse grupo, meninos e meninas em sinais de trânsito violentam a nossa vista com seus discursos piedosos e a inegável aparência de mártir, de alguém que sofre por estar em tal situação, muitas vezes inconscientemente. Esses humanos são descoloridos por nós, pois não enxergamos os problemas deles numa talvez inocente tentativa de ceifar o problema e redimensioná-lo para um possível responsável.

Essas pessoas passeiam pelo escuro dos grandes primas da sociedade e nos levam consigo. À noite é a vez da prostituição reinar absoluta e com ela os vícios que mantêm inebriados homens, mulheres e travestis, indivíduos sedentos por atenção, carinho, aceitação e que procuram na clandestinidade a válvula para despojar suas frustrações. Pela janela do quarto, pela janela do carro, como bem enfatiza a cantora, seja por onde for, somos defrontados por eles, oferecendo seus serviços a pessoas também sem cor, sem vida e sem alma, que buscam nesses guetos as respostas para as indagações das quais já sabem as respostas. O que acontece é que somos inevitavelmente guiados pelas nossas excentricidades egoístas e com isso não enxergamos a dor do outro, ou o outro como um de nós, mas sim como objetos descartáveis e, neste caso, seres invisíveis quase etéreos.

Entretanto, esquecemos que todos eles fazem parte do palco negro da pobreza, da miséria, do esquecimento, o qual fabrica atores e atrizes incolores, sem brilho. Esses humanos opacos, porém, protagonizam tudo o que já sabemos, mas não queremos enxergar: que há um grave abismo entre os mais ricos e os mais pobres e que essa cratera, criada pelos primeiros, tem desumanizado a sociedade ao ponto de não encontrar soluções individuais que possam atenuar a desgraça alheia. Pelo contrário, agimos como coadjuvantes esperando que o diretor desse espetáculo de horror, neste caso atribuído geralmente ao governo, tome as suas devidas providências.

De fato, as ações governamentais são crucias para a transformação da sociedade, uma vez que são elas que detêm o poder necessário para equilibrar as finanças do país e fazer uma justa repartição desta. No entanto, em se tratando do Brasil, a população não deve centralizar as esperanças nos nossos políticos, visto que o mar de corrupção que submerge nossa pátria demostra que não somos conscientes o bastante ainda para escolhermos os nossos representantes. Por causa disso, a pobreza deixa o papel de protagonista e se torna vilã, antagonizando os dilemas vividos por diversos grupos, ao passo que externaliza para o restante da sociedade que algo está errado e deve ter uma solução imediata.

Disso resultam os imediatismos, os auxílios e “bolsas” que atuam paliativamente para solucionar feridas de dimensões cirúrgicas. Também é neste momento que as manifestações de intolerância e violência ganham vida, pois sem condições de vivência, os menos favorecidos, econômico e socialmente falando, vão buscar nas transgressões sociais os subsídios para sobreviverem. Então, crianças povoam sinais, mendigos mancham ruas e indivíduos de gêneros diversos prostituem seus corpos, servindo de mercadorias para aliviar a pobreza de pessoas com posses financeiras, mas pobres em outros sentidos. Com isso, a marginalização surge através dos vícios das drogas lícitas e ilícitas, dopando zumbis que apenas necessitam de uma cor, um foco de luz, para se sentirem de novo vivos.

Por causa desse descaso, é neste instante que as cores humanas são enquadradas num espectro de luzes sombrias, as quais descolorem indivíduos como se estes não existissem e com eles os seus problemas. Isto porque é bem mais simples invisibilizar as mazelas alheias do que tomar um posicionamento sobre elas. A sociedade vive nesta passividade doentia, a qual vem construindo seres robotizados, desumanos, sem cor interior e, possivelmente sem alma. Falta para isso, seguir o conselho poético de Adriana Calcanhotto e ver o estar de cada coisa e filtrar seus graus para sensibilizar essa gente que a pobreza, mãe maior da miséria e da fome e parente próximo do esquecimento, não é um problema exclusivo do governo, mas de cada um de nós.

Então, o que fazer? Acredito que o primeiro passo é deixarmos de lado as prosopopeias que criamos, atribuindo vida, de fato, as pessoas que estão vivas, iguais a nós. Independentemente de cor, classe social e orientações sexuais, todos somos uma única espécie e por mais redundante que isso possa parecer não é demais relembrar, já que estamos criando subgrupos ou categorias superiores e inferiores, quando na verdade não há e nunca houve tal distinção. O que há é a pobreza econômica, que atinge boa parte da população, e a humana, que não se compadece com o outro nem tem o mínimo de compaixão com os seus problemas. Assim, ao invés de ver tudo enquadrado, você, eu, nós todos podemos deixar esse remoto controle que limita nossa vista e obscurece as cores vivas de outros humanos e tomar o controle dessa situação para, então, repetir em voz alta outro verso de Adriana Calcanhotto que diz “eu presto muita atenção no que meu irmão ouve [...]” e complementá-lo com as palavras sente e, sobretudo necessita.

Entro num museu, paro em frente a um quadro, a uma escultura, a uma cerâmica, e enxergo o aviso: não pode tocar. Não posso, então não toco, tudo bem. Não tocarei pra não estragar, pra não quebrar, pra durar por muitos séculos. Nada de sentir a textura do material, nada de deixar minhas digitais impressas, nada de arranhar a tela com minhas unhas mal lixadas, de desgastar as cores com meus dedos imundos. Então a gente respeita, não chega muito perto, não atravessa a linha amarela, nada de macular a obra com nosso hálito quente e nosso olhar aproximado demais.

Assim é também entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre amigos que procuram se proteger: não se pode tocar em determinados assuntos.

Há questões que arriscam ser maculadas com palavras, que um olhar aproximado demais poderia danificar. Instaura-se sempre um silêncio de museu ao nos aproximarmos de temas perigosos. Tolera-se apenas o som da tevê, de um teclado de computador, de alguém falando ao telefone, ruídos parecidos com silêncio, já que não fazem barulho excessivo, não incomodam o suficiente. 

Palavras incomodam o suficiente. Vamos falar sobre o que nos aconteceu dez anos atrás. Vamos conversar sobre a morte do seu pai. Vamos tentar entender juntos a razão de você estar bebendo desse jeito. Me diz o que te perturbou na infância. Não, não quero tocar neste assunto.

Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um.

Todas as relações do mundo possuem sua prateleira de cristais. Há sempre um suspense, uma delicadeza ao transitar pela fragilidade do outro. Melhor não falar muito alto, é mais prudente ir devagar e com cuidado. Para não estragar, pra não quebrar, pra durar por muitos séculos.

As conversas masculinas raramente são generosas quando se trata dos gays. O comentário mais benigno que eu escuto desde criança é que os gays são legais porque deixam mais mulheres para o resto de nós. Apesar desse clichê, e de tantos outros igualmente bobos, minha impressão é que a influência gay no mundo masculino tem sido enorme nas últimas décadas. Enorme, subestimada e positiva.

Desde o seu surgimento, nos anos 60, o movimento gay ajudou a redefinir a maneira como os homens agem e pensam a respeito de si mesmos. A existência pública de homens gays ampliou radicalmente o repertório masculino, arejando e diversificando a ideia de masculinidade. Antes da influência gay, o comportamento masculino estava confinado até a página 10 do livro de conduta. Quando os gays emergiram socialmente, eles ampliaram o livro até a página 100. Foi um movimento libertador para todo mundo, que ajudou a melhorar inclusive a vida dos casais, tornando-a menos estereotipada. 

Vamos por partes, para que eu me explique. 
O primeiro impacto óbvio da cultura gay no mundo masculino aconteceu no universo da aparência. Desde os anos 60, os homens se aproximaram dramaticamente das mulheres na maneira de se relacionar com a moda e com o corpo. Dêem uma olhada nas ruas: a garotada está cada vez mais andrógina, confundido os códigos masculinos e femininos. Você olha o garoto, ou a garota, e demora alguns segundos para definir o gênero daquela figura ambígua. E às vezes nem consegue. Essa ambiguidade é um dos resultados radicais da influência gay na aparência masculina. Mas não é o único. Perdeu-se no tempo a reação aos primeiros modismos trazidos pelos anos 60. Aqui no Brasil eram considerados “coisa de viado”. A marchinha de carnaval “Cabeleira do Zezé”, composta em 1963, ilustra bem a reação aos cabelos compridos, que voltavam a ser usados pelos homens desde o século XIX. “Será que ele é?”, perguntava a letra da marchinha.  
Pouco depois, nos anos 70, surgiram as bolsas a tiracolo, os sapatos de plataforma, as calças e camisas coloridas, os colares e pulseiras. Tudo isso pertencia, originalmente, ao universo feminino. Seu uso rotineiro pelos homens foi o equivalente cultural de um grande movimento transformista. Quarenta anos depois, homens e mulheres usam brincos, piercings, tatuagens de cores berrantes, sapatos vermelhos, calças cada vez mais justas e camisetas cada vez menores e mais decotadas. Há uma enorme convergência para o que eu chamaria de “campo gay” da moda. Mesmo os machos acima de qualquer suspeita vestem camisas agarradinhas que mulheres compram para eles nas melhores lojas da cidade. 
O resultado disso tudo é que você olha na rua e não distingue mais o gay do não gay. Além de se vestir de forma parecida, homens gays e heteros estão igualmente malhados, bem definidos, de corpo cuidado. A vaidade que antes era feminina e depois virou gay agora é descaradamente masculina. Há caras perfeitamente macho que depilam o peito, tiram a sobrancelha, cuidam das unhas, fazem mecha nos cabelos. São os metrosexuais, que viraram referência para homens de todas as idades. Um cidadão dos anos 50 que desembarcasse subitamente na Avenida Paulista acharia que metade dos homens se parece com mulher. Do ponto de vista dele, seríamos todos um pouco Laertes. 
No comportamento a mudança foi na mesma direção. O mundo masculino ficou gay. Os homens falam, andam e dançam de uma forma que seria inaceitável nos anos 50. A tendência geral é de feminização. Os heterossexuais ficaram mais suaves nos seus modos. Ou mais estridentes. Mais delicados, certamente, de um jeito que nossos pais e avós estranhariam. É comum que homens nascidos nos anos 60 conversem com caras 20 ou 30 anos mais novos e tenham a impressão de que eles são gays – pelo jeito de falar, pela linguagem corporal, por causa da atitude. A mudança de códigos foi muito rápida e muito profunda. A agressividade e a grosseria, que anos atrás eram a marca registrada de certa masculinidade, caíram em desuso. São mal vistas. Viraram quase um sinônimo de escrotidão. Há nisso uma influência benéfica da cultura gay. Ela modificou e amoleceu a cultura masculina, da mesma forma que o Gilberto Freyre diz que o Brasil fez com a cultura portuguesa – para melhor. 

Essas mudanças, evidentemente, chegaram ao campo dos sentimentos e da intimidade. 

Os homens agora choram sem vergonha nenhuma. Confessam seus sentimentos de um jeito até embaraçoso. Eles ficaram frágeis. As mulheres dizem, ironicamente, que estão com saudades daqueles tipos sisudos e caladões, de sentimentos inescrutáveis. Eles sumiram. Agora os homens são sensíveis. Falam pelos cotovelos e estão cheios de dúvidas e temores. Muitos dão excelentes donos de casa, tremendos pais, cozinheiros de primeira linha - e ainda são ótimos companheiros para fofocar e assistir à novela. Umas moças, enfim, mas com quem as mulheres podem transar gostosamente, uma vez que eles têm uma relação melhor com a própria cabeça e o próprio corpo. Aquele outro tipo, o macho à la Clint Eastwood, estava sufocando seus sentimentos mais viscerais, tinha coisas demais a reter e a esconder. Além de falhar na cama nas horas mais inesperadas, ele era uma panela de pressão pronta a explodir. Ou a ter um AVC ou um enfarte aos 40 anos. 

Aliás, eu acho que a importância do movimento gay vai além das questões pessoais. Ou de casais. Quando um sujeito ou uma mulher lutam pelo direito de fazer sexo com quem desejar – e de andar na rua vestido como quiser, abraçado a quem achar melhor – ele e ela estão lutando, intrinsecamente, pelo direito de todos serem o que são. Os ganhos pessoais e íntimos de alguns se traduz em ganho público para a comunidade inteira. Quando um grupo socialmente discriminado é reconhecido em seus direitos, quando ele ganha espaço para expressar seus gostos e sentimentos (desde que isso não aconteça em prejuízo dos outros), a sociedade inteira se torna um pouco mais livre. Há uma lógica inexorável de contágio que começa com a liberdade do indivíduo, avança para o seu grupo e se espalha para a sociedade toda – e para o mundo. Quando os sinos tocam de júbilo, eles também tocam por todos nós. Gays e não gays. 


Visto na: Época



Sinopse

Os O'Brien (Brad Pitt e Jessica Chastain) tiveram três filhos, criados com grande rigidez pelo pai. O mais velho deles, Jack (Sean Penn), sempre teve atritos com o pai, em parte por reconhecer em si mesmo um pouco dele. Além disto, já adulto, Jack enfrenta um forte sentimento de culpa devido à morte de seu irmão.



Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüentas anos.

Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente tô fora. Fui expulso pra sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!…

O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio… A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. Os dois pontos disse que eu sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé.

Até o cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final pra trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões. Será que se deixar um topete moicano posso me passar por aspas?… A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, “Kkk” pra cá, “www” pra lá.

Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou “tremendo” de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas. E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!…

Nós nos veremos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história.

Adeus,

Trema.

15 novembro 2012



Tudo o que é proibido aguça o imaginário do homem. Essa máxima engloba várias temáticas possíveis, sobretudo aquelas que transgridem a ordem social, subvertem o sistema, escandalizando moralistas e aqueles que mantêm a verdade e os bons costumes no topo da pirâmide do politicamente correto. Nesse sentido, o sexo ganha o epicentro da discussão, visto que ao longo da história da humanidade a sua manifestação libertária sempre foi vista como um tabu, reduzindo-o a práticas procriativas. Encapsulado “em quatro paredes”, lentamente na atualidade o sexo ganha uma configuração perigosa, sobretudo através das ferramentas midiáticas, religiosas e consumistas que de certa forma utilizam-se dele ora como elemento atrativo para a comercialização de pessoas/objetos, ora como instrumento de coerção.

Sem perceber, somos atentados com os abusos de uma sociedade amplamente estupradora. Beijos calientes em novelas e minisséries aquecem a temperatura de jovens imaturos, desvirginando-os de forma abrupta, numa construção corrosiva da sexualidade. Tudo isso difundido em horário nobre, com belos artistas seja extrapolando nas interpretações, seja servindo de objetos para comerciais de roupas íntimas, cervejas e automóveis. A personificação avessa dessas celebridades, já que muitos deixaram de ser humanos para se tornar meros produtos, rótulos e embalagens consumíveis, contribuiu para outro problema, a formação de pessoas narcísicas. Ser e estar belo, com seios aerodinâmicos, pernas e braços torneados, músculos volumosos, e corpos simetricamente curvilíneos, tornou-se o ideal neo-parnasiano de beleza. Com isso, crianças, jovens e muitos adultos são estuprados por esse modelo de vida e se tornam prisioneiros dele.

Além da mídia, outro profanador dos nossos corpos é a atual sociedade do consumo. Cotidianamente, somos estuprados por ela nas mais simples atividades até as mais complexas. Para isso, as propagandas fazem o papel de invadir nossas mentes, insuflando lá carências que não existem. Tal intromissão acaba criando pessoas tão descartáveis quanto os aparelhos que adquirem. Ocos, esses indivíduos vagam como se fossem zumbis, guiados apenas pela necessidade de consumir demasiadamente. Na verdade, há uma desconfiguração do humano e a formação de seres etiquetas, que são avaliados pelas marcas de bens que possuem e possam vim a adquirir. Essa superficialidade é fruto do assédio que o consumo fomenta nos indivíduos, criando espécimes vazias e alienadas.

Nesse sentido, outras instâncias, além da mídia e da sociedade de consumo, exercem uma extrema influência na vida das pessoas, violando mentes quase que imperceptivelmente. As religiões, sobretudo aquelas do segmento Católico/protestante, são as que mais coagem vidas, com seus discursos rasos e sua moral duvidosa. Detentora da palavra divina, seu principal foco discursivo está fincado justamente no sexo e na pluralidade da sexualidade humana. A priori, é importante fazer uma precisa distinção entre sexualidade e sexo.  Enquanto este se refere ao gênero, ou seja, a ortodoxa classificação do masculino e o feminino, aquele se refere à pluralidade sexual da humanidade (Assexualidade, Heterossexualidade, Homossexualidade, Bissexualidade, Pansexualidade Transexualidade etc.).

Esclarecida essa questão, essas religiões não enxergam, ou não querem enxergar, que as manifestações sexuais não são satânicas, nem transgridem a perpetuação da nossa espécie, mas sim são peças do grande jogo do prazer, do qual não impõe regras aos seus jogadores. Sabendo disso, muitos religiosos habilidosamente utilizam da liberdade que o sexo apresenta para aprisionar as pessoas. Disso, palavras como luxúria, pecado, fornicação surgem para atormentar a vida daqueles que querem ter uma vida religiosa e, consequentemente um lugar no céu. Na verdade, o sexo deixou de ser um ato natural, prazeroso, para se tornar uma ferramenta abusiva, mecânica, transmutada nas mãos desses estupradores poderosos que usam a fé alheia para proferir seus discursos nazistas. Ecos contra o aborto, a homossexualidade e o uso da camisinha só evidenciam a violência praticada por eles contra tais grupos.

O debate, então, parte do princípio dos perigos que a intromissão do sexo orquestrado por certos segmentos sociais, que defendem e propagam uma prática sexual insalubre; que nos fazem comprar, gastar e formam pessoas presas, vendidas como se fossem prostitutas industrializadas; e que podem influenciar na estruturação de seres frívolos, incapazes de entender a sexualidade e o sexo de forma natural, pode acarretar numa sociedade enferma como a nossa. Mesmo que aja uma predisposição para vasculhar essa “caixinha de pandora”, não se pode negar que as influências externas têm uma significante parcela de culpa na propagação de um sexo transgressor, do qual somos brutalmente violentados sem a menos ter a consciência de quem são nossos estupradores.

Feitas as devidas colocações, é necessário entender os perigos exercidos por todos esses veículos, numa sociedade acostumada a não pensar. A mídia vai continuar com suas cenas fortes, o consumismo continuará a fazer mais vítimas e as religiões também continuarão com seu discurso opressor por um bom tempo. Nesse acasalamento forçado, no qual somos a parte passiva, só nos resta se esquivar desses estupradores desalmados, ficando a espreita e não na mira de seus olhos, para que não nos tornemos alvos eternos dos seus desejos mais sórdidos. Só assim, deixaremos de ser vitimados no corpo, na mente e na alma por instituições como estas que utilizam da sensualidade de suas palavras para atrair pessoas para suas respectivas ideologias.


Hoje fui estuprada. Subiram em cima de mim, invadiram meu corpo e eu não pude fazer nada. Você não vai querer saber dos detalhes. Eu não quero lembrar dos detalhes. Ele parecia estar gostando e foi até o fim. Não precisou apontar uma arma para a minha cabeça. Eu já estava apavorada. Não precisou me esfolar ou esmurrar. A violência me atingiu por dentro.

A calcinha, em frangalhos no chão, só não ficou mais arrasada do que eu. Depois que ele terminou e foi embora, fiquei alguns minutos com a cara no chão, tentando me lembrar do rosto do agressor. Eu não sei o seu nome, não sei o que faz da vida. Mas eu sei quem me estuprou.

Quem me estuprou foi a pessoa que disse que quando uma mulher diz “não”, na verdade, está querendo dizer “sim”. Não porque esse sujeito, só por dizer isso, seja um estuprador em potencial. Não. Mas porque é esse tipo de pessoa que valida e reforça a ação do cara que abusou do meu corpo.

Então, quem me estuprou também foi o cara que assoviou para mim na rua. Aquele, que mesmo não me conhecendo, achava que tinha o direito de invadir o meu espaço. Quem me estuprou foi quem achou que, se eu estava sozinha na rua, na balada ou em qualquer outro lugar do planeta, é porque eu estava à disposição.

Quem me estuprou foram aqueles que passaram a acreditar que toda mulher, no fundo no fundo, alimenta a fantasia de ser estuprada. Foram aqueles que aprenderam com os filmes pornô que o sexo dá mais tesão quando é degradante pra mulher. Quando ela está claramente sofrendo e sendo humilhada. Quando é feito à força.

Quem me estuprou foi o cara que disse que alguns estupradores merecem um abraço. Foi o comediante que fez graça com mulheres sendo assediadas no transporte público. Foi todo mundo que riu dessa piada. Foi todo mundo que defendeu o direito de fazer piadas sobre esse momento de puro horror.

Quem me estuprou foram as propagandas que disseram que é ok uma mulher ser agarrada e ter a roupa arrancada sem o consentimento dela. Quem me estuprou foram as propagandas que repetidas vezes insinuaram que mulher é mercadoria. Que pode ser consumida e abusada. Que existe somente para satisfazer o apetite sexual do público-alvo.

Quem me estuprou foi o padre que disse que, se isso aconteceu, foi porque eu consenti. Foi também o padre que disse que um estuprador até pode ser perdoado, mas uma mulher que aborta não. Quem me estuprou foi a igreja, que durante séculos se empenhou a me reduzir, a me submeter, a me calar.

Quem me estuprou foram aquelas pessoas que, mesmo depois do ocorrido, insistem que a culpada sou eu. Que eu pedi para isso acontecer. Que eu estava querendo. Que minha roupa era curta demais. Que eu bebi demais. Que eu sou uma vadia.

Ainda sou capaz de sentir o cheiro nauseante do meu agressor. Está por toda parte. E então eu percebo que, mesmo se esse cara não existisse, mesmo se ele nunca tivesse cruzado o meu caminho, eu não estaria a salvo de ter sido destroçada e de ter tido a vagina arrebentada. Porque não foi só aquele cara que me estuprou. Foi uma cultura inteira.

Esse texto é fictício. Eu não fui estuprada hoje. Mas certamente outras mulheres foram.”


Eu havia prometido não responder à coluna do ex-diretor de redação de Veja, José Roberto Guzzo, para não ampliar a voz dos imbecis. Mas foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos, que eu dominei meu asco e decidi responder.
 
A coluna publicada na edição desta semana do libelo da editora Abril — e que trata sobre o relacionamento dele com uma cabra e sua rejeição ao espinafre, e usa esses exemplos de sua vida pessoal como desculpa para injuriar os homossexuais — é um monumento à ignorância, ao mau gosto e ao preconceito.
 
Logo no início, Guzzo usa o termo “homossexualismo” e se refere à nossa orientação sexual como “estilo de vida gay”. Com relação ao primeiro, é necessário esclarecer que as orientações sexuais (seja você hétero, lésbica, gay ou bi) não são tendências ideológicas ou políticas nem doenças, de modo que não tem “ismo” nenhum. São orientações da sexualidade, por isso se fala em “homossexualidade”, “heterossexualidade” e “bissexualidade”. Não é uma opção, como alguns acreditam por falta de informação: ninguém escolhe ser homo, hétero ou bi. O uso do sufixo “ismo”, por Guzzo, é, portanto, proposital: os homofóbicos o empregam para associar a homossexualidade à ideia de algo que pode passar de uns a outros – “contagioso” como uma doença – ou para reforçar o equívoco de que se trata de uma “opção” de vida ou de pensamento da qual se pode fazer proselitismo.
 
Não se trata de burrice da parte do colunista portanto, mas de má fé. Se fosse só burrice, bastaria informar a Guzzo que a orientação sexual é constitutiva da subjetividade de cada um/a e que esta não muda (Gosta-se de homem ou de mulher desde sempre e se continua gostando); e que não há um “estilo de vida gay” da mesma maneira que não há um “estilo de vida hétero”.
 
A má fé conjugada de desonestidade intelectual não permitiu ao colunista sequer ponderar que heterossexuais e homossexuais partilham alguns estilos de vida que nada têm a ver com suas orientações sexuais! Aliás, esse deslize lógico só não é mais constrangedor do que sua afirmação de que não se pode falar em comunidade gay e que o movimento gay não existe porque os homossexuais são distintos. E o movimento negro? E o movimento de mulheres? Todos os negros e todas as mulheres são iguais, fabricados em série?
 
A comunidade LGBT existe em sua dispersão, composta de indivíduos que são diferentes entre si, que têm diferentes caracteres físicos, estilos de vida, ideias, convicções religiosas ou políticas, ocupações, profissões, aspirações na vida, times de futebol e preferências artísticas, mas que partilham um sentimento de pertencer a um grupo cuja base de identificação é ser vítima da injúria, da difamação e da negação de direitos! Negar que haja uma comunidade LGBT é ignorar os fatos ou a inscrição das relações afetivas, culturais, econômicas e políticas dos LGBTs nas topografias das cidades. Mesmo com nossas diferenças, partilhamos um sentimento de identificação que se materializa em espaços e representações comuns a todos. E é desse sentimento que nasce, em muitos (mas não em todas e todos, infelizmente) a vontade de agir politicamente em nome do coletivo; é dele que nasce o movimento LGBT. O movimento negro — também oriundo de uma comunidade dispersa que, ao mesmo tempo, partilha um sentimento de pertença — existe pela mesma razão que o movimento LGBT: porque há preconceitos a serem derrubados, injustiças e violências específicas contra as quais lutar e direitos a conquistar.
 
A luta do movimento LGBT pelo casamento civil igualitário é semelhante à que os negros tiveram que travar nos EUA para derrubar a interdição do casamento interracial, proibido até meados do século XX. E essa proibição era justificada com argumentos muito semelhantes aos que Guzzo usa contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afirma o colunista de Veja que nós os e as homossexuais queremos “ser tratados como uma categoria diferente de cidadãos, merecedora de mais e mais direitos”, e pouco depois ele coloca como exemplo a luta pelo casamento civil igualitário. Ora, quando nós, gays e lésbicas, lutamos pelo direito ao casamento civil, o que estamos reclamando é, justamente, não sermos mais tratados como uma categoria diferente de cidadãos, mas igual aos outros cidadãos e cidadãs, com os mesmos direitos, nem mais nem menos. É tão simples! Guzzo diz que “o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa”. Ora, mas é a lei que queremos mudar! Por lei, a escravidão de negros foi legal e o voto feminino foi proibido. Mas, felizmente, a sociedade avança e as leis mudam. O casamento entre pessoas do mesmo sexo já é legal em muitos países onde antes não era. E vamos conquistar também no Brasil!
 
Os argumentos de Guzzo contra o casamento igualitário seriam uma confissão pública de estupidez se não fosse uma peça de má fé e desonestidade intelectual a serviço do reacionarismo da revista. Ele afirma: “Um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”. Eu não sei que tipo de relação estável o senhor Guzzo tem com a sua cabra, mas duvido que alguém possa ter, com uma cabra, o tipo de relação que é possível ter com um cabra — como Riobaldo, o cabra macho que se apaixonou por Diadorim, que ele julgava ser um homem, no romance monumental de Guimarães Rosa. O que ele, Guzzo, chama de “relacionamento” com sua cabra é uma fantasia, pois falta o intersubjetivo, a reciprocidade que, no amor e no sexo, só é possível com outro ser humano adulto: duvido que a cabra dele entenda o que ele porventura faz com ela como um “relacionamento”.
 
Guzzo também argumenta que “se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for”. Bom, nós, os gays e lésbicas, somos como o espinafre ou como as cabras. Esse é o nível do debate que a Veja propõe aos seus leitores.
 
Não, senhor Guzzo, a lei não pode obrigar ninguém a “gostar” de gays, lésbicas, negros, judeus, nordestinos, travestis, imigrantes ou cristãos. E ninguém propõe que essa obrigação exista. Pode-se gostar ou não gostar de quem quiser na sua intimidade (De cabra, inclusive, caro Guzzo, por mais estranho que seu gosto me pareça!). Mas não se pode injuriar, ofender, agredir, exercer violência, privar de direitos. É disso que se trata.
 
O colunista, em sua desonestidade intelectual, também apela para uma comparação descabida: “Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays; é a violência contra todos”. O que Guzzo não diz, de propósito (porque se trata de enganar os incautos), é que esses 300 homossexuais foram assassinados por sua orientação sexual! Essas estatísticas não incluem os gays mortos em assaltos, tiroteios, sequestros, acidentes de carro ou pela violência do tráfico, das milícias ou da polícia. As estatísticas se referem aos LGBTs assassinados exclusivamente por conta de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero! Negar isso é o mesmo que negar a violência racista que só se abate sobre pessoas de pele preta, como as humilhações em operações policiais, os “convites” a se dirigirem a elevadores de serviço e as mortes em “autos de resistência”.
 
Qual seria a reação de todas e todos nós se Veja tivesse publicado uma coluna em que comparasse negros e negras com cabras e judeus com espinafre? Eu não espero pelo dia em que os homens e mulheres concordem, mas tenho esperança de que esteja cada vez mais perto o dia em que as pessoas lerão colunas como a de Guzzo e dirão “veja que lixo!”.
 
Jean Wyllys
Deputado Federal (PSOL-RJ)
Publicado no site do Dep. Jean Wyllys
 


TEMA – ENEM 2012

O MOVIMENTO IMIGRATÓRIO PARA O BRASIL NO SÉCULO XXI.

Imigração satisfatória

      O processo migratório acontece desde a Antiguidade. Os povos, em busca de melhores condições de vida, vagavam rumo a uma terra mais promissora, com abundância em água e propícia à caça. Hoje, mesmo modificadas as formas de sobrevivência e consolidadas as demarcações territoriais, ainda ocorre à imigração. No Brasil, os fluxos migratórios passaram por diversas rotas em função da melhor distribuição de renda. Diante disso, o país ganha visibilidade externa e chama a atenção de indivíduos que almejam melhores condições econômicas; no entanto, verifica-se que há uma disparidade entre aqueles que aqui chegam, onde uns prosperam e outros não.

   Em uma análise inicial, é importante notar que a melhora na economia tem apresentado consequência positiva para o país. Isso se deve a descentralização dos grandes projetos, desconcentrando-se do eixo Rio-São Paulo e estendendo-se a outros Estados da Federação. Com isso, de olho nessas possíveis ofertas de emprego e objetivando altos retornos financeiros, pessoas qualificadas de diversas nações migram para o país. Servem de exemplo de rotas pretendidas os empreendimentos na Zona Franca de Manaus e no Estaleiro e Polo Petroquímico no litoral do Estado de Pernambuco.

    Em contrapartida, observa-se que o Brasil tornou-se também rota de imigrantes que dispensam qualificação profissional especializada. Por possuir extensa fronteira territorial com quase todos os países da América do Sul, transforma-se em potencial gerador de empregos na visão dos conterrâneos latinos. Dessa forma, por exemplo, colombianos, peruanos, bolivianos e paraguaios deparam-se com outra realidade ao chegarem ao país, onde são utilizados como mão de obra barata por empresários do setor econômico primário, obrigando-os a trabalhar por mais de 12 horas diárias e em condições sub-humanas análogas à escravidão.

   Percebe-se, portanto, que, embora o país apresente melhoras econômicas, ainda enfrenta problema no tocante às questões migratórias. Fiscalizar as fronteiras, combater os casos de trabalho exploratório e oferecer um sistema que integre o imigrante de forma a capacitá-lo e gerar renda mostra-se como algo viável para mudar a atual realidade. Assim, acolhendo quem chega de forma satisfatória para ambas as partes, o Brasil crescerá proporcionando oportunidade e num ritmo positivo.

Aluno: Rossini Gomes
Prof. Diogo Didier


Muito Estranho (Cuida Bem de Mim)

Dalto

Hum!
Mas se um dia eu chegar
Muito estranho
Deixa essa água no corpo
Lembrar nosso banho...
Hum!
Mas se um dia eu chegar
Muito louco
Deixa essa noite saber
Que um dia foi pouco...
Cuida bem de mim
Então misture tudo
Dentro de nós
Porque ninguém vai dormir
Nosso sonho...
Hum!
Minha cara prá que
Tantos planos
Se quero te amar e te amar
E te amar muitos anos...
Hum!
Tantas vezes eu quis
Ficar solto
Como se fosse uma lua
A brincar no teu rosto
Cuida bem de mim
Então misture tudo
Dentro de nós
Porque ninguém vai dormir
Nosso sonho...(2x)


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”

Cora Coralina

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror — mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum — uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia

tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade

mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem. Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade.

Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento. Pluto — assim se chamava o gato — era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento — enrubesço ao confessá-lo — sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior.

Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim — que outro mal pode se comparar ao álcool? — e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão — dissipados já os vapores de minha orgia noturna —, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele.

Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado — um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos.

No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo — coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente.

Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, as palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição — pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa —, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme — tão grande quanto Pluto — e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo — e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse — detendome, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo.

Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê — seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia.

Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente — , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo — apresso-me a confessá-lo —, pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar — sim, mesmo nesta cela de criminoso —, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara

a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível — que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa —, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte! Na verdade, naquele momento eu era um miserável — um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso — encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim — pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros — os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade — e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal.

Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite — e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia — e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro.

A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

— Senhores — disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada —, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes — os senhores já se vão? —, estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror.

Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.

Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!