Ser Feliz é Ser Livre

23 maio 2020


Esse cara acima sou eu atualmente. Sou o mesmo que aparece na foto ao lado na parte do "Meu Perfil". Salvo pelos quilos a mais, o sorriso e as sobrancelhas continuam iguais. Nas raríssimas vezes em que apareci de cara nesse espaço foram para deflagrar meus anseios mais profundos. Com o tempo, preferi fazer isso em forma de textos, artigos para ser mais preciso, sobre temas que inquietavam, e ainda perturbam, a minha existência. Nem sei quantas vezes fiz isso por aqui. Não parei para quantificar. Sei que hoje faz 10 ANOS que tenho esse cantinho, onde eu me mostrei por inteiro em cada publicação. Sim, tudo o que há aqui diz muito ou pouco de mim, porém, nada está à toa. O Ser Feliz é Ser Livre é a filosofia do que sou, acredito e defendo. É meu mantra maior que levarei para o resto da vida. No entanto, sinto que agi com incoerência com esse espaço, preso a ele mais do que ele a mim. Então, chegou a hora de nos libertarmos. Nada mais simbólico do que fazer isso no exato dia em que ele foi concebido. Por isso, deixo minha singela contribuição à internet e os muitos que passaram por essas páginas, abandonando meus "eus" nessas tantas publicações. Tudo ficará aqui a depender das transformações virtuais. Eu, por outro lado, guardarei na memória os frutos dessa dedicação e, quem sabe, vez ou outra, faça uma visita. Até lá, eu preciso seguir adiante, enxugar as lágrimas que derramei de tanto apego a esses alter egos que deixo nesse lugar, para me permitir assumir novas personas em um mundo tão carente de colocações de alguém atrevido, orgulhoso, mas apaixonado pela escrita como eu. Assim, muitíssimo obrigado ao desconhecido que ousou visitar o que há de mais íntimo da minha pessoa. Meu desejo agora é o mesmo do início, continuar feliz e livre, pois sem isso, minha existência não fará sentido.


Obrigado a Todos e Todas <3 p="">


"Sou uma confluência de sentimentos e experimentações, buscando a todo instante um caminho seguro para a felicidade. Sei que a jornada é longa. Por isso, convido você a embarcar nessa aventura perigosa e incerta chamada VIDA...SER FELIZ É SER LIVRE!!!" - Diogo Didier

19 maio 2020



A solidão tem sido minha companheira há algum tempo. Não a clássica da ausência de pessoas, mas a moderna, tecnológica, por vezes clichê das retóricas das mídias sociais onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, sem ninguém. Falo da materialização da descoberta de estar só, característica inata a todos nós, agora chamada de solitude. Assim, a consciência de tal estado costuma ser dolorosa, sobretudo porque caminho na contra mão do pensamento coletivo do qual precisamos nos agregar. Porém, a minha tomada de posição frente a isso veio à revelia dos ruídos da interação constante, em meio a patologização da minha mente, em outras palavras, depressão. Hoje, embora esteja em contínuo tratamento analítico, a sensação de ser unitário ainda é um incômodo, menor que antes, mas latente, depreciativo, maculando meu íntimo em solavanco com minha pressa em pertencer ao mundo. Curiosamente, todavia, O Dilema do Porco Espinho, de Leandro Karnal, conseguiu acalentar a belicosa barreira que nutria em ler sobre isso, permitindo-me um olhar sobre tal discussão dantes impercebível.

Estruturalmente, o livro é pequeno, de título curioso, até um tanto comercialesco, e revestido de uma diagramação que não torna a capa atrativa. Talvez o maior chamamento da obra se limite, no primeiro olhar, ao seu autor, professor consagrado e mais recentemente figura cativa nos diversos vídeos viralizados na rede. A linguagem, contudo, está longe do pedantismo academicista. Qualquer pessoa de nível medíocre de leitura, assim como eu, é capaz de compreender o que está escrito ali. Muito provavelmente, essa tenha sido a intenção do autor: escrever (ser) inteligível no discurso para levar a maior quantidade de pessoas as suas percepções sobre solidão. Isto porque, antes de tudo, O Dilema do Porco Espinho se mostra perceptível a gama pouco problematizada das solidões. É, para tanto, pretensioso ao compila-las, mas nem por tal audácia se mostra prepotente. Trata-se da fecunda necessidade de Karnal de provar que há diversas formas de solidão interessantes, benéficas, transcendentais, tristes, reveladoras, porém, todas humanas em sua essência e passíveis de serem sentidas e vividas por cada um de nós.

Sobre esse ponto, foi o que mais me tocou, a certeza de que havia positividade em certas manifestações da solitude, as quais não costumam ser apresentadas a nós. A tradicional, do isolamento que nos aparta do mundo, seja por decisão própria ou por determinação legal, sempre me assustou. Contudo, entre ambas, fui vitimado pela primeira em uma sociedade onde grande parcela vive o mesmo dilema. Nesse lugar sombrio dentro de nós mesmos, passamos a acreditar que a nossa dor é insuportável demais, sempre maior do que podemos aguentar. A solidão se apresenta como um martírio, uma penitência aplicada muitas vezes pela depressão que se ocupa de nós quando somos vulnerabilizados pela vida. Karnal, mesmo não intencionalmente, desconstrói essa alcova da qual estamos aprisionados para dizer que é possível sair dela, se entendermos as razões que nos levaram até lá. Claro, o livro não tem viés psicanalítico nem se pretende a isso. Entretanto, as pluralizar a solidão, o autor ressignifica o egoísmo nutrido em horas de fragilidade em que cremos que somos os únicos sofríveis desse dilema, quando na verdade há milhares de pessoas com o mesmo problema, em searas diferentes e lidando com eles diferenciadamente.

No entanto, é evidente que há faces da solidão que merecem acompanhamento médico, sobretudo quanto dão indícios claros de autocídios futuros. Nesses casos, não sei se O Dilema do Porco Espinho seja um livro resolutivo, pois não há nele uma preocupação em esmiuçar as razões da depressão em detalhes o suficiente para que as suas manifestações diversas toquem o interlocutor. Karnal, de fato, faz um compilado interessantes, traz exemplos, comparações, associa ideias e chega a problematizar pontos nevrálgicos de cada uma delas, mas não o suficiente para livrar alguém da sedução e tirar a própria vida. É uma obra de dimensão cosmopolita e, por isso, centrada nas frustrações advindas das aglomerações nas grandes sociedades onde todos se conectam sem firmar laços firmes de relacionamento. O livro talvez seja frágil nesse aspecto porque não há fortalecimento possível na fluidez da pós-modernidade, a não ser aquela que se enrijece dentro de nós a partir da tomada de consciência de que não estamos sozinhos nessa, tão pouco a nossa solidão é única ou especial.

Na verdade, fazemos parte do grande porco-espinho que provavelmente foi o motivador para que Leandro Karnal tenha se dedicado a esse assunto, a vida na internet. Contraditoriamente, é lá onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, ilhados em nós mesmos, verdadeiros náufragos no ciberespaço, onde todos embarcam em naus alheias para sobreviver, mas acabam submergindo que percebem que ninguém é capaz de suportar tamanha responsabilidade. Não à toa, as mídias sociais deflagrem tantos casos de dependência, principalmente após a popularização dos celulares e sua adesão imediata pela juventude. O primeiro ganhou formas de interação distintas e cada vez mais desumanas: não se liga mais, se “twitta-se”, “zapei-se”, “instagrameia-se”, em uma comunicação entremeada de elementos, nem sempre humanos, que funcionam no momento da execução, mas são deteriorados tempos depois. Daí as constantes atualizações dessas plataformas, porque seus criados sabem que estão contribuindo para a solidão de seus usuários, porém, na lógica capitalista, adoecer consumidores é o mínimo prejuízo diante das cifras vultuosas advindas dos milhares de acessos por minuto.

Fora desse cenário frágil de interação humana, a vida na margem do mundo real se deteriora ainda mais, pois muitas pessoas passam a depender da tecnologia para se sentirem vivas, incluídas, pertencentes a universos dos quais a existência fora da rede não foi possível. Assim, sentenciados duplamente, pelas dores existenciais e pela perda de referenciais, os indivíduos sós passam a tratar a solidão apenas como algo negativo, degenerando suas faculdades mentais precocemente. Em contrapartida, todo o enriquecimento, elevação, maturidade e encontro consigo mesmo, oportunizado por momentos preciosos de solidão, são ignorados quando colocamos qualquer solidão no lado ruim da vida. Em O Dilema do Porco Espinho vemos grandes exemplos de figuras importantes da história da humanidade fazendo a diferença para si e o outrem a partir do momento em que tomou consciência de que seu estado de solitude, inevitável e por isso comum a todos, pode ser transformador. O problema é a visão conservadora cristã da família comercial de margarina limitado ao clássico binômio bíblico Adão e Eva, como se tal complementação fosse suficiente para preencher o vazio de ser só em um mundo onde o outro é apenas instante.

Portanto, O Dilema do Porco Espinho é um livro interessante, de leitura leve sobre um tema muito complexo e de muitas camadas para serem analisadas. Porém, na celeridade da vida moderna, é uma obra eficiente, pois cumpre o seu papel de expor a pluralidade das solidões, seus ganhos, suas perdas e como cada uma delas tem nesses potenciais a chave para uma vida menos dolorosa. Para alguém como eu em processo analítico me reencontrando comigo mesmo na casa dos 30 anos foi um achado esse livro, a oportunidade de me tirar do limbo do qual vagava e me direciona para o caminho que me for mais conveniente. A você, ele pode ter outros significados, porém, acredito que abrirá uma fenda por onde alguma luz entrará na escuridão muitas vezes auto imposta a nós pela solidão. Antes de tudo, não há um caráter milagroso na obra, nem poderia diante do perfil de seu autor. Então, não vá ler esse livro achando que haverá algum recurso mirabolante para lidarmos com nossos temores. Nossos fantasmas, apesar de similares, são muito particulares de cada um de nós e precisam ser vencidos pela nossa força de vontade e, em alguns casos, pela intervenção de algum profissional. Fora isso, O Dilema do Porco Espinho, se não te fizer entender em que solidão estás, fará você compreender a sua solitude, respeitá-la, assumi-la ou extirpá-la da sua vida. Seja qual for a decisão, tenha ciência de que será a melhor para você.


“E daí, você quer que eu faça o quê “. A pergunta defensiva entra no verbete raso das falas dantescas daquele que deveria ser o responsável pelo país. Ao assistir a declaração, meu maxilar titubeou, ensaiando uma resposta que não veio de imediato. Dei de ombros, então, acreditando que não seria válido gastar meu palavreado com quem pouco sabe do peso e do poder da retórica na comunicação humana -algo que se estende a muitos dos seus fãs. Porém, ao silenciar-me, percebi que estava incorrendo pelo mesmo erro do “e daí” presidencial: banalizar o fim desumano de centenas de conterrâneos do meu país mortos aos montes pelo coronavírus, mas também pela bizarrice da presidência. Assim, após oxigenar minhas ideias, nessa atmosfera rarefeita que se tornou o Brasil, disse a mim mesmo: não posso achar normal alguém no papel que ele ocupa, em uma nação com o potencial como o nosso, tratar a vida humana com desdém, e me calar diante disso, quando na verdade, o meu papel, assim como o de muitos de nós diante disso, é de, no mínimo, se indignar. Se você, contudo, ainda não enxerga o fosso do qual a postura presidência tem sentenciado a nação, esse texto não te ajudará, mas, quiçá, uma intervenção psiquiátrica.
Vamos aos fatos, o governo Bolsonaro tem implantado uma necropolitica, ou seja, o Estado tem decidido quem vive ou morre na nação. Os resistentes ao debate dirão que tal postura é antiga, atravessa governos e se materializa na desigualdade social da qual marginaliza grupos sociais há eras; levando-os à morte. Há verdade nisso, como também é verídico que nessas governanças pregressas poucos foram os líderes que se colocaram tão abertamente contra a integridade física dos seus cidadãos. Havia um cinismo instaurado na política que, pelo menos, velava o desrespeito de seus integrantes com aqueles que os elegeram. Bolsonaro não se dá a esse trabalho. Seu discurso não economiza barbaridades e deixa claro o que interessa: o dinheiro, os empresários e os religiosos políticos, todos ávidos pela verticalização do isolamento social para engordar seus lucros. Nisso, precisamos aplaudi-lo, Bolsonaro é leal aos seus ideais toscos e comprometido com quem financiou a fábrica de Fake News que o empurrou ao poder. Logo, após alçar o platô mais alto, alguns milhares de mortos por sua incompetência em legislar não significa nada, para quem nada faz, nada fará e nada é.
Sobre essa questão, o presidente do Brasil segue à risca condutas feitas à exaustão pelo Estado para exterminar quem não contribui para a máquina financeira estatal, ou, impede que ela esteja nas mãos de sempre. Na Segunda Guerra Mundial, o nazismo fez isso com seu processo de eugenia ao limpar da Europa judeus, indesejados, sob o subterfúgio da fé, quando na verdade o holocausto tem profundas conotações financeiras. 6 milhões de vidas foram ceifadas com tal higienização. Por aqui, o país faz isso em proporções similares, mas diluídas pela mídia policialesca: vai da Cracolândia ao extermínio dos jovens negros, pobres e periféricos, avança pelas penitenciárias, ganha terreno na ineficácia dos três poderes, ampara-se no parasitismo religioso na política, afeta minorias como mulheres, gays e índios, impacta na educação e, agora, desgasta ainda mais a saúde pública. A tática é a mesma, porém, diferente dos alemães, Bolsonaro não tem um inimigo apenas, seu foco é no coletivo que não coadunar com suas ordens tirânicas, inconsequentes e genocidas. Na base do “quem manda aqui sou eu”, exonera-se Mandetta em detrimento de um que às vistas parece adentrar na saúde, doente. Tudo por um capricho de um caricato presidente que não aceita o fato de alguém ganhar mais destaque que ele.
O cenário ficou ainda mais claustrofóbico, mas não menos interessante, quando é antecedido de mais incoerências de seu governo. A saída de Sérgio Moro, o pupilo mais querido que seu próprio benfeitor, sufocou a câmera de gás que se tornou o governo Bolsonaro. A Direita, de verdade e amarela, ficou literalmente vermelha, não de raiva, mas de confusão. Viu-se na rede apoiadores da presidência tagarelando frases soltas, desconexas, provavelmente aprendidas com seu ídolo, porém perdidas, jogadas ao vento da rede onde prontamente foram vilipendiadas, com razão, por quem de fato já alertava que a casa estava desmoronando. Eu cheguei a ver em júbilo um bolsominio ferrenho incapaz de conjecturar qualquer argumento plausível para o despautério daquele que ele elegeu. Era uma pandemia de Glória Pires na sua icônica menção: “não sou capaz de opinar”. Na realidade, a capacidade cognitiva de muitos deles não lhes permitia grandes avanços dialéticos, salvo aqueles reproduzidos pelos clichês enunciados viralizados por Bolsonaro via Twitter. Então, não restava outra escolha: de herói, moro se tornou comunista para muitos. Contudo, outros tantos estão decepcionados com o presidente Messias, personificado na figura salvadora responsável por resgatar o país da iniquidade. Tontos, não apenas foram enganados, como não possuem artifícios suficientes para colocar panos quentes na zona feita pelo seu iconoclasta.
Depois do litígio da aliança aparentemente “feliz para sempre” entre Moro e Bolsonaro, nada é improvável na novela política cujo enredo nem Walcyr Carrasco conseguiria elaborar com perfeição. Há muitos pontos nevrálgicos: filhos envolvidos em crimes, milícias inseridas nas transações políticas, máquina de Fake News, a morte inexplicável de Marielle Franco, a destruição da Amazônia, nepotismo, e uma série de improbidades realizadas por quem defende o slogan “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”. Lamento pela mediocridade de parcela da sociedade que se deixou contaminar pelo moralismo cego, travestido de verde e amarelo, mas vê um rastro de sangue se construindo por trás de uma política que fez de tudo para abolir o vermelho de seu arco-íris, só não fez o mesmo com o pote de ouro. Muito pelo contrário, no panorama pandêmico atual, a presidência negligencia as acusações sobre si e ou seus atacando governos estaduais focados em salvar sua população de um iminente colapso na saúde pública. Expert em fazer barulho, ele desfoca a atenção de si para desferir barbaridades contra quem está fazendo um trabalho que deveria ser do chefe de Estado. Funciona! Há quem concorde em abolir o isolamento social, mesmo com os crescentes dados, embora subnotificados, do coronavírus no país. Mas, não importa. A premissa é reter o mísero benefício para alimentar o cidadão e fazê-lo voltar a produzir para os bolsos de Bolsonaro e de suas alianças controversas.
Diante disso, quando ele responde a pergunta sobre o avanço da morte de milhares de vidas com “e daí, quer que eu faça o que?”, ele não está esperando uma resposta óbvia, porque, simplesmente, não há o que pedir de alguém que nada fez de substancial para o país. Bolsonaro é uma alegoria, um protótipo mal projetado pela direita, que se aproveitou da vilania midiática contra Lula para introjetar a pior versão brasileira na presidência, a qual vivia escondida sob a alcunha do perfil cortês vendido do país no exterior. Assim, por mais que se formulem respostas claras para mais esse vilipêndio governamental, estaremos direcionando esforços ao vazio, de alguém que está no limbo de suas faculdades mentais, transitando do nada para o lugar nenhum. Os dizeres precisam ser proferidos para a mídia, grande culpada pela chegada tosca dele na presidência, assim como as redes sociais, através da revelação das incongruências presidenciais, seus excessos, sua incapacidade, para não apenas ridicularizá-lo, mas também os seus fies seguidores, muitos tão truculentos quanto, que deverão ser culpabilizados por coadunar com àquele questionamento e serão marcados na história como participes de um genocídio sem precedentes oriundo de uma política fascista incansável. Aí, para os que sobreviverem, perguntaremos, na esperança que a resposta seja negativista: e daí, valeu a pena votar 17 na última eleição?!

O despautério em torno do pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia do coronavírus segue um script seguido à risca por ele desde sua queda meteórica na política: de se eximir da toda a responsabilidade conferida a seu cargo e transferir a todos a culpa por sua incapacidade e insensibilidade diante desse problema. A cada novo discurso isso é reiterado. A previsibilidade de sua rasa capacidade cognitiva deveria ser capaz de nos preparar para escatológica fala que sai do seu aparelho, por ora, fonador. Entretanto, o mais assustador é o levante feito por seus adoradores para encontrar em um palheiro a agulha que possa alinhavar qualquer coerência o bastante para costurar os retalhos deixados pelo caminho por Bolsonaro. Não são mais céticos, são lunáticos, tão passíveis de internação quanto aquele que eles idolatram.

Na verdade, após o que foi proferido ontem em rede nacional, Bolsonaro deveria no mínimo sofrer sanções públicas por desdenhar da ciência e incitar irresponsavelmente a saída populacional diante desse panorama. É um crime de ódio, oriundo de um discurso raivoso do qual a economia, as alianças com as elites, o enriquecimento dele e de seus corsários, se sobrepõe à vida dos mais vulneráveis. Quem coaduna com tal pensamento é tão fascínora quanto ele, passível de punição dentro dos regimentos legais. Não se trata de posição política apenas, mas de direitos humanos, legitimação científica, empatia pelas dores do próximo, sentimento este em um mundo onde nações como Itália, Espanha, Estados Unidos e China, onde a mortalidade é avassaladora, é encontrado. Contudo, ele e seus devotos seguidores tem uma noção particular sobre humanidade.

Diante disso, a mídia passou a figurar entre os inimigos do governo, em especial a Rede Globo. Tenho minhas considerações sobre essa emissora em muitos aspectos, mas colocá-la como algoz da regência de Bolsonaro é esconder o fato da Rede Record, comandada por outro insano, ser a única porta-voz midiática do chefe de Estado, com claros sintomas de desequilíbrio mental. Assim é fácil usar um canal religioso, claramente alienante e antidemocrático para defender suas asneiras. Todavia, um presidente que se prese não temeria aparecer em qualquer veículo informativo, se a sua capacidade de ocupar tal cargo fosse superior às artimanhas de setores comunicativos. O problema é que Bolsonaro sabe de suas limitações, assim como seus partidários. Apenas o povo, contaminado pelo bolsonavírus, insiste em paliativos para defendê-lo. Entretanto, a resistência nessa defesa é sintomática à ignorância, fazendo com que, por exemplo, algo como o coronavírus seja relativizado.

Além da mídia, a China passou a ser atacada pelos brasileiros infectados pela mutagênico vírus da ignorância injetado por Bolsonaro. Para eles, o coronavírus é o “chinavírus”, desconsiderando o fato comprovado de que a doença existe há décadas, apenas sua mutação se deu naquele país e se expandiu para o mundo. Ou seja, poderia ter sido lá ou em qualquer outra nação. O vírus é uma resposta a sanha humana pelo progresso desenfreado, o mesmo que tem no Brasil devastado as nossas florestas e, no resto do planeta, tem encurtado a vida da natureza. Como resposta, o meio ambiente se defende atacando seus algozes. Todavia, para os patologizantes integrantes da seita bolsonarista não há espaço para preservação. Os verbos que os regem é destruir, arruinar, fechar, ou como profere seu iconoclasta: “tem que acabar com isso aí!”. Então, em uma prática autodestrutiva, muitos não perceberam, ainda, que tais atitudes virão retaliadas contra eles, seja em forma de vírus, ou noutra moléstia socioambiental à saúde de todos.

Em contrapartida, a perplexa retórica indefensável de Bolsonaro chegou ao apogeu de nos expor à morte. É aviltante de quem exerce um poder representativo entre as massas. Vai de encontro a todos os protocolos internacionais em torno dessa pandemia. Até regimes conservadores como a Rússia e o Irã demonstraram mais solidariedade diante desse panorama do que ele. Na contramão de todos, nosso presidente aconselha fiéis (leia-se cristãos) a irem aos seus templos, descredita as recomendações médicas dadas por profissionais preocupados com a insuficiência estrutural do SUS, crítica as medidas dos governadores dos estados cientes da imprudência do Estado frente a tal pandemia e, de quebra, convida a população a saírem de seus confinamentos porque o vírus “só é nocivo aos mais velhos”, frase que por si já diz muito do pouco que nos governa. Tudo isso já seria o bastante para qualquer indivíduo são repudiar à presidência. Mas, porque há quem defenda aquele mentecapto?

Aliança política, golpe, milícias, alienação, interesses religiosos, educação precária, ignorância, distorção discursiva, Fake News, preconceito, intolerâncias, pseudo nacionalismo, embrutecimento social, militarização, armamentismo das massas, idolatria, exclusão das minorias, exaltação da família tradicional, ruralismo, corrupção, interferência virtual, Olavo de Carvalho, perseguição, populismo, elitismo, negação histórica, ditadura, segregação, tirania, escola sem partido, inversão de valores, falácias, ideologia de gênero, kit gay, misoginia, machismo, homofobia, transfobia, Rede Globo, “Golden Shower”, mamadeira de piroca, balbúrdia, Cuba, mais médicos, comunismo, índios, cultura do estupro, naturalização das violências, menino veste azul e menina veste rosa, femicídio, Damares Alves, antidemocracia, Sérgio Moro, inconstitucionalidade, nepotismo, bandido bom é bandido morto, cuspe, Jean Wyllys, afronta a laicidade, Rede Record, Trump, vergonha alheia, paixão, Lula, PT, Freud explica, “gripezinha”, coronavírus, Bolsonavírus.

Em doses homeopáticas, Bolsonaro patologizou grande parte da sociedade. Primeiro pelo seu arquétipo rude, visto como antídoto para a realidade nacional, depois por suas coloquialidades em uma nação denotativamente sem bases intelectuais fortes o bastante para se imunizar da potência viral da retórica bolsonarista. Por isso, os acometidos por essa doença minimizam o coronavírus e asseveram todos os coliformes fecais expelidos em forma de palavra pelo chefe da nação. Certamente, entre eles houve uma substituição do cérebro pelo intestino, um agravo não apenas a anatomia dos corpos, mas, sobretudo, a quem tem o desprazer de presenciar tal escatológica narrativa. Por essa razão, ao devotos da presidência, cegos pelos excrementos que saem de sua boca, apenas replicam irrefletidamente essa pocilga que virou nosso país. Estão chafurdados em algo do qual eu não ousaria me aproximar. Assim, frente a tamanha fé, espero profundamente que tais indivíduos encontrem fôlego nessas palavras para se higienizarem diante da sujeira em que estão mergulhados. Em parte, não é culpa de vocês terem sido fisgados pelas artimanhas políticas do Golpe a atualidade. Somos todos suscetíveis a escolhas erradas, mas podemos fazer o certo quando este se materializa a nossa frente. Porém, se vocês insistem em partilhar de mais essa porcalhada, foi bom chamá-los de humanos um dia. Passem bem!


Quando o colapso irrompe fronteiras geográficas, o mínimo a ser fazer é se proteger. Porém, a pandemia do Coronavírus exige mais de nós nesse sentido. Pela primeira vez, na liquidez da pós-modernidade, precisamos do isolamento por nós e pelo outrem. Pode soar nobre, mas esconde em essência instintos de sobrevivência por si só egoístas. Em miúdos, significa evitar a retaliação proveniente da disseminação da doença. Conter esse looping é desafiador em uma sociedade onde o outro é indispensável. Mas atar esses laços é inegociável neste instante, tanto quanto é imediato implantar medidas higienistas em nosso cotidiano. Trata-se de uma empatia forçada, em um planeta onde a exploração de tudo formou o que somos, temos e o que sofremos. Aquele vírus talvez seja o apelo da natureza para os ataques mortíferos contra ao meio ambiente, em detrimento da sanha capitalista, a qual, predatoriamente, devasta tudo à sua volta. A resposta, então, veio em mais uma pandemia. Por ela, de repente o mundo se estreitou. Nunca estivemos tão ligados. Aqueles cuja superioridade tem sido responsável por aniquilar a vida se veem agora vulneráveis diante daquilo que une a fragilidade humana no planeta: a saúde.

Estou em confinamento. Sei que não sou o único, pelo menos não deveria. Há tantos iguais a mim reclusos pela incerteza à espera milagrosa de um antídoto que nos traga de volta a realidade. Na mídia, há muito barulho, e números, e casos, e mortes. Fico atordoado com o que vejo. E o SUS? Pensar nisso me causa calafrio. Ensaio ignorar as notícias, me ocupar com trabalhos inacabados, me desligar do problema, mas é inútil. Ele está no ar agora, ávido por um hospedeiro. Ficar em casa é o nosso superpoder, nossa contribuição, o preço a ser pago pelo apresso que devemos ter pelo outro. Na rua, entre labirintos de concreto, muitos aderiram à sensatez do momento se resguardando. Outros, porém, afrontam as normas e perambulam por aí como se estivéssemos diante de uma virose. É a irresponsabilidade daqueles que não foram educados a cooperar, em um país de base cidadã fragilizada. E o vírus se alastra, as projeções negativas se avolumam e eu me atemorizo.

Vagando pela minha casa, cada vez mais claustrofóbica, ouço meu vizinho a tagarelar com outros sobre o panorama. A Itália é citada por eles. Fico atento, ansioso para ver qual problematização sairá daquela conversa. Palavras como inferno, condenação, Roma, castigo, deixam meus ouvidos desacreditados. Estavam justificando as mortes naquele lugar por castigo divino. Fiquei sem ar e precisei entrar para a minha ainda menor residência. Noutro dia, uma senhora pregava na frente do meu lar para dois alcoólatras. A retórica era a mesma: destruição, insurreição, punição, isso proferido a plenos pulmões como se no púlpito religioso estivesse. Nada falei. Observei calmamente aquela cena, pois saberia que me seria útil quando fosse escrever. Das poucas saídas que dei para trabalhar, descobri que há religiosos protestando para ocupar as igrejas. Querem cultuar, encher templos, mesmo que isso contrarie as exigências sociais. O presidente coaduna dessa loucura, embora uma das máximas de Deus é sua onipresença em todos os lugares.

Aqui estou, surpreso como o misticismo é forte em detrimento da ciência. Nessa batalha antiga, médicos de hoje usam as redes sociais para implorar pela nossa colaboração: fiquem em casa, lavem as mãos, mantenham o distanciamento social. Tudo é dito à exaustão para sensibilizar, cobrar um posicionamento que deveria ser natural. Mas não é. O Estado interviu, decretou o fechamento de tudo, provavelmente implantará toque de recolher. A decisão, todavia, não partiu de imediato do chefe da nação. Foi preciso que cada capital nacional se mobiliza-se por conta própria, pois a presidência desdenhou, eficaz em seu papel de não fazer nada, sobre a pandemia: “é fantasia!”. Infelizmente não era. Há correligionários dele detectados com o vírus. Brasília está entre as cidades com mais casos, antecedida por Rio de Janeiro e São Paulo. E o acrítico líder da pátria foi obrigado a pensar. Da sua oca cabeça beligerante não saiu solução empática. De sua boca as únicas preocupações são com os prejuízos econômicos, com os empresários que lucraram com sua vitória e a elite, primeira a ser afetada pela pandemia. Não há atenção à saúde, cuidados com o povo, respeito aos profissionais que estão agora lutando com pouco que dispõem para salvar vidas.

Panelaços surgem entre protestos e homenagens. São ações louváveis vistas pelo telespectador que, de casa, acompanha o mundo que conheceu se transformar da noite para o dia. Contudo, são frágeis em suas militâncias, em um país onde muitos que ali estão, gritando palavras de ordem contra o desgoverno, votaram naquele energúmeno para a presidência e, ao mesmo tempo, pouco se preocupam em qualificar a saúde nacional. Agora, com as redes pública e privada na iminência de um colapso, e a economia em declínio, batem-se panelas, palmas, batuques, contra um e a favor de outros; nessa hipocrisia abrasileirada que não cansa de nos ridicularizar perante o mundo. Tudo bem, escapou aos olhos de muitos. Não há tempo para embates. Precisamos de diálogo. Ouvir nunca foi tão imperativo. A mídia tem sido esse canal comunicativo. Há que ache exagero tamanha cobertura. Porém, foi a negligência informativa uma das causas do caos na Itália, onde centenas de vidas são ceifadas a cada hora. Aqui, a voz da ciência precisa chegar a todos o quando antes, ainda mais na crescente onda de terraplanismo. Trata-se de validar pela primeira vez a razão de quem tem propriedade para falar de doenças.

Em casa, fui visitado pela angústia. Sua chegada não foi à toa. Tudo o que vejo, leio e assisto, formam um panorama desalentador. Penso em quem mora comigo, uma entre tantas senhoras inclusas no grupo de risco do Coronavírus. Me apavoro ainda mais. Durmo mal, como idem. É uma característica minha sofrer por antecipação, mesmo ciente que é inútil. A resposta que busco vem da palavra. Escrever é o elixir das minhas dores. Quando sinto que estou prestes a sucumbir de vez, escrevo. Aqui estou. No entanto, sei que outros não têm válvulas de escape para fugir. Daí vem a ansiedade, depressão, o suicídio, patologias agravadas há tempos pela pressão de pertencer a um corpo social, mas que podem ser agravadas pelo confinamento. Precisamos de sanidade, seja pela fé não alienante, seja pela racionalidade dos fatos. Cada um precisará encontrar seu eixo de equilíbrio. Reaprender a viver nas sombras, voltar a caverna platônica que acreditávamos estarmos libertos. Felizmente, temos a tecnologia para acalentar a solidão. Ela precisará ganhar mais vida nestes tempos de morte. A única aliança possível entre nós.

Lembrei da viralização da corrente “ninguém solta a mão de ninguém”. É uma metáfora, sei disso, mas não podemos correr o risco de criar discursos dúbios nessas circunstâncias. Para a ocasião, o mais sensato seria “todo mundo colabora para todo mundo”, ficaria na mesma indefinição inclusiva da primeira. Precisamos nos solidarizar pelo outro que é o nosso correlato, nosso espelho, nosso sangue. É desrespeitoso recorrer ao sagrado por uma salvação individual quando aquele que pede não tem feito sua parte pelo coletivo. Se precisar clamar ao sobrenatural para nos proteger, faça! Tudo é válido! Porém, com as mãos higienizadas e sem aglomerações, é possível se conectar com o divino e obter as graças desejadas. Por sua vez, no âmbito político, a presidência do Brasil, inegavelmente inapta para estar onde estar, precisa ser humilde para admitir sua incapacidade administrativa, visível a olho nu, e pedir ajuda, mostrar solidariedade, ser empático, mesmo que hipocritamente. O povo gosta de líderes que mostrem interesse pelos seus dilemas. Mais que isso, invista na saúde e seus profissionais, os grandes heróis nessa batalha contra o Coronavírus. A nós fica a lição aprendida a duras penas pelo confinamento: quem conecta o mundo são as pessoas. Então, vamos fazer a nossa parte para perpetrar essa conexão.


Não precisa ser Cristão para saber que os fundamentos deixados por Jesus na terra têm sido deturpados por hordas de hereges, travestidos sob o manto da evangelização, cuja irrupção na política tem deixado marcas tão profundas quanto na Idade Média. Desse coquetel molotov político-religioso nacional, advindo da onda ultradireitista do governo Bolsonaro, não há uma divisão clara do que seria céu e inferno. Tais instâncias coexistem aqui na terra nos limítrofes determinados por quem se acha merecedor de ocupar o firmamento, ao passo que relega as chamas infernais aqueles que não coadunam com suas demarcações. Porém, a fala do impronunciável ministro da educação a respeito da reportagem de Drauzio Varella, sobre a realidade prisional das travestis e transexuais, demonstra em sua potência verbal a força de quem tem propriedade para falar de inferno, pois este está alocado nas entranhas daquele indivíduo.

Como se sabe, é cada vez mais complexo determinar onde começa a política e termina a religião, tamanha intromissão desta no cenário público nacional. Com a democracia em ruína, e o alavancar do ultraconservadorismo, a metamorfose entre ambas tem feito estragos imensuráveis na sociedade. Um deles é permitir que a instância educacional tenha um ministrado que se apropria de conceitos religiosos para tratar de temáticas sociais. Ao fazer isso, o “imprecionante” ministro da educação deixa mais que claro o caráter punitivista da governança atual. Uma posição tirânica, por isso controversa, de quem deveria usar a fé para abrandar as violências, concretas e simbólicas, que vitimizam a sociedade, sobretudo os grupos minoritários.
Certamente, Abraham Wheintraub representa esse novo nicho religioso-protestante-petencostal-politico da qual certos grupos humanos são passíveis de condenação. Não há julgamento, perdão, tão pouco absolvição. Os direitos se restringem aos seus púlpitos eivados de uma retórica salvadora ilusória, restrita a seus fiéis hipnotizados pelos brados de seus pastores-políticos, os quais usam do sensacionalismo, e não do pecado, para levar ao inferno seus desafetos. Foi isto feito no vídeo de Drauzio Varella. A pachorra do ministro em atacar a atitude do médico escancara a tática infalível que levou Bolsonaro à presidência, criar balbúrdia- a única verdadeira deste desgoverno- para incitar os preconceitos infinitos da nação. Em parte, funcionou. A travesti Susy, destacada no final da matéria jornalística, foi ainda mais hostilizada por aqueles hipnotizados pelos delírios da atual governança.

Entretanto, xingar no Twitter através das Fake News só funciona para quem já foi infectado pelo vírus da burrice que assola o país desde o golpe a Dilma Rousseff. Para os demais, imunes e essas sandices, a atitude do ministro semianalfabeto escancara a falta de compaixão de setores religiosos para com a população penitenciária, mas, sobretudo, os grupos LGBT’s. Os que felizmente gozam de liberdade veem seus direitos serem arruinados paulatinamente desde que a sanha bolsonarista irrompeu o poder, por meio de falácias em torno do “kit gay”, ideologia de gênero, proibição de discussões sobre educação sexual, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, doutros recalques protagonizados por quem tenta inutilmente castrar a sexualidade humana. E, os detidos, idem. Dessa forma, diversos líderes religiosos magistrados evidenciam com essas atitudes qual é o perfil selecionado pelas suas Igrejas a ir ao céu: héteros, brancos e endinheirados; desconfigurando o legado deixado pelo Cristo.

Na verdade, o que tocou na ferida desses impostores foi ver na mídia o papel que deveria ser exercido por eles, sendo feito através da solidariedade alheia. Assim, ao desmascarar o projeto de governo das Igrejas, as quais, em suas figuras representativas na política, pouco se importam com presidiários, bem como aqueles que estão à solta, se estes fizerem parte dos grupos marginalizados por eles e usados como pêndulo a séculos para o enriquecimento da Igreja Católica no passado e, hoje, das esferas protestantes. O propósito delas é expandir seus espaços, não para disseminar o amor de Cristo, mas para enriquecer por meio dEle. Isso numa nação construída sob os pilares da fé e erguida nas frágeis paredes da ignorância pulveriza-se rapidamente, sobretudo na realidade hiperconectada atual.

De volta ao inferno de Weintraub, mandar Varela e a travesti Suzy para tal local não parece ser o mais apropriado. Para quem acredita nessa condenação eterna, talvez seja um destino horrível imaginar uma eternidade de sofrimento, em um lugar criado para punir os ditos ímpios da terra. Porém, para muitos indivíduos, o inferno existe em vida. Susy e aquelas travestis e transexuais estão cientes disso, pois, a criminalidade que as abraçou advém de uma sociedade preconceituosa, responsável por inúmeras violências, torturas, discriminações que resvalam em mortes psicológicas desses indivíduos, quando não ceifam literalmente suas vidas. Por isso, lamentavelmente, a morte parece ser para muitas delas o descanso diante de tudo que sofrem. Todavia, há pessoas como o médico Drauzio Varella, antes de tudo humano, capaz de se separar entre o joio e o trigo nesta seara. Tamanha seleção prima pelo respeito profissional, dedicação a trazer dignidade para a vida de pessoas cujas histórias de miséria contam com descasos no âmbito da saúde física e emocional. Assim, um simples abraço, que poderia ter sido dado por esses políticos pseudo sacerdotes de Cristo, foi ofertado pela simplicidade de quem, distante de conotações políticas, apenas fez o que a governança e seus correligionários são incapazes de admitir, o seu papel.

Ao invés disso, preferem retomar o espaço ficcional de danação destinado aos pecadores, elaborado pelo Catolicismo, do que expressar qualquer tipo de respeito a condição humana, a partir da óptica religiosa da qual tanto usufruem. Porém, muito antes da representação dantesca conhecida hoje por nós, o inferno é um estado moral. Talvez o lugar mais complexo onde o humano possa ir. Trata-se de um espaço destinado às maledicências que a vil capacidade humana é capaz de realizar. Contudo, a sociedade, através da educação, tem papel crucial nisso, pois o conhecimento civiliza, humaniza, cria seres empáticos, os quais, em consonância com o subjetivismo da fé, conseguem moldar um caráter sempre em processo de ajuste. O estado de elevação capaz de abraçar a diferença e levar até ela o aconchego negado por tantos preconceitos, estes sempre precipitados a condenar ao fogo aqueles que Cristo certamente levaria para luz. Enquanto não entendemos que o binômio céu e inferno é intrínseco ao que somos, caímos nessa balela de condenar o outro aos braços do capiroto, quando, na verdade, o coisa ruim já habita em muitos de nós.

19 janeiro 2020


O olhar é um dos sentidos humanos mais complexos. É a partir dele que captamos o mundo, ao passo que nosso íntimo é fisgado pelas lentes alheias. Porém, em uma sociedade dissimulada, as relações humanas são ofuscadas pelo consumo, pela mídia, pelas possibilidades da internet, lentes desviantes que nos impedem de ver a singularidade do outro a nossa volta, renegando-o a invisibilidade. Assim, determinados dilemas surgem à nossa frente como um holograma, mera representação de uma realidade paralela, distante, mas, ao mesmo tempo, cabível de existir caso fôssemos capazes de captar as relíquias individuais que há em cada pessoa com suas histórias, dramas, particularidades, sonhos. A Vida que Ninguém Vê faz um compêndio visceral das existências daqueles que subsistem pelo país. São narrativas intrigantes construídas sob o pilar crítico do texto jornalístico de Eliane Brum cuja sensibilidade com a palavra nos faz ver o não visto.

A priori, chamou a minha atenção a maneira como Brum conduziu àquelas histórias. Dona de uma escrita inegavelmente empática, suas crônicas tocam mais profundamente pelo senso de humanidade da escritora em torno daquelas narrativas. Cada uma delas Brum deu uma roupagem textual digna de seus enredos. Não fez isso pelo simples artifício de ornamentar tais trajetórias, como se quisesse suavizar seus dissabores, mas, na minha perspectiva, para permitir que víssemos com os mesmos olhos dela aquelas vidas apagadas pelo esquecimento. Só a palavra é capaz de reavivar a existência daqueles cuja vida foi destinada ao vazio do silêncio. Eliane Brum é a porta-voz desses emudecidos, além de luneta para as nossas visões míopes sobre o outrem. Após concluída cada crônica, insurge uma inquieta constatação: o que nos fez cegar diante dessas pessoas que, apesar de únicas, possuem histórias semelhantes a muitos de nós, mas que não notamos frente ao turbilhão de coisas que embaçam nossas vistas?

Talvez não seja a intenção da autora buscar uma resposta a esta e tantas outras indagações. Senti que o que está em jogo nas crônicas é um exercício de identificação. É permitir ao outro exilado em seu limbo a chance de voltar à luz não apenas em suas palavras, mas no nosso vislumbre. Isto porque o espanto também é capaz de suscitar grandes reflexões sobre a coisificação do outro, seu apagamento perante aos demais, garantindo a tais espectros que vagueiam pela cidade a chance de encarnarem seus corpos por meio da corporificação das palavras de Brum que nos penetram a alma. Por isso, a cada nova crônica, sentimos algo transcendental, como se aqueles personagens transitassem entre dois mundos, ambos desconhecidos por nós, porém resgatados pelo jornalismo holístico de Brum.

Nesse sentido, é preciso também enaltecer o trabalho dessa jornalista. Já a conheço de longas datas das colunas que escrevia na Revista Época e agora no El País Brasil. Contudo, esse é o meu primeiro contato com seu livro. Brum, tanto nas colunas quanto aqui, é excepcional no trato com as palavras. Sua linguística é preenchida de uma dignidade que a diferencia de muitos outros jornalistas. Destaca-se ainda o enfoque que dá as suas notícias vide crônicas. Nelas o clichê não encontra morada. Não há uma preocupação com o noticialesco. Ela não banaliza os comezinhos do cotidiano. Seu trabalho centra-se nos meandros, nas imperceptibilidades, no não visto, naquilo que seria fatalmente ignorado por outros repórteres. Dessas sutilezas, ela emerge em carne viva a realidade sanguinolenta, sofrível, às vezes auspiciosa e inebriante de pessoas carcomidas pelo abandono. O impacto que recebemos nos faz adultecer.

Após passar a vê a vida que não via, me encantei com muitas crônicas relatadas por Brum: história de um olhar; Adail quer voar; Enterro de pobre; O sapo; O menino do alto; O exílio; Sinal fechado para Camila e o doce velhinho dos comerciais, foram as que mais me chamaram atenção. Nelas uma parte de mim, meus temores mais secretos, se manifestaram em meio aquelas verdades vividas por desconhecidos que poderiam estar transitando, e estão, pela minha cidade. Esse é sem dúvida outro ponto a ser destacado deste livro: muitos daqueles personagens não se restringem às ruas de Porto Alegre. Há muitos outros com narrativas tão fantásticas, tristonhas e desafiadoras próximas de nós, mas não as vemos porque estamos hipnotizados pela profusão das alvíssaras criadas pelo capitalismo, responsável por coisificar humanos e humanizar as coisas. Dessa inversão, há os invisíveis e os invisibilizados. Próximos em semântica, mas opostos na sintaxe. O invisibilizado é aquele ignorado pelos privilegiados, mas que se insurgem seja pela violência, seja pela engenharia de suas habitações no panorama urbano das cidades. Os invisíveis, porém, são aqueles que nem ricos nem pobres notam. Sua presença é destituída de valor por fazer parte da subcategoria anterior. Por isso não os vemos porque em nenhum momento atribui-se vida a eles. São seres sem alma numa sociedade desalmada.

Por tudo isso, A Vida que Ninguém Vê é um relicário, uma abertura jornalista para aqueles sem espaço dentro e fora dos meios midiáticos. É uma coletânea indigesta para quem tem brio de admitir a estrábica visão que nutrimos pelos nossos semelhantes. De tal maneira, em muitas páginas me senti grogue, desconcertado dentro da minha atmosfera a qual considerava difícil de suportar. Todavia, ao ler as histórias singulares daquelas pessoas, percebi como a leitura consegue realocar nosso egocentrismo para fora do nosso orgulho, fazendo-nos entender que apenas enxergando o outro em suas complexas construções poderemos conferir algum sentido a nossa existência. Daí a importância do choque, encandear às vistas para passar a ver de verdade. Assim, as lágrimas dos meus olhos, que antes não viam, passaram a se inundar com a vida daqueles desconhecidos. Dessa forma, aconselho não apenas ler esse livro o quanto antes, mas também se permitir romper a represa contida em seus olhos. Deixem suas lágrimas desaguarem por eles, por você, por nós, mas não por pena dos envolvidos, e sim para que todo humano tenha o direito de ser visto como tal.

12 janeiro 2020


Estou revendo os meus conceitos sobre determinadas leituras. Mesmo sendo um cara flexível quanto a determinados livros, me descobri nos últimos anos nutrindo preconceitos - sempre rasos e desnecessários - sobre o que poderia ler. Porém, não faço parte do time dos classistas que levantam a bandeira dos cânones literários para menosprezar outros livros. Longe disso. Apenas olhava de soslaio para determinadas leituras que me pareciam badaladas demais, ou com o quê de autoajuda do qual não sou fã, e de fato isso eu assumo. Porém, esse empedernido leitor costuma, pelo menos no presente, rever certas posições antiquadas que tinha. Foi o que fiz dessa vez ao ler o livro Me Poupe da jornalista Nathalia Arcuri.

O título comercialesco já adianta o seu teor: trata-se de um livro para ajudar pessoas, que assim como eu, não sabem administrar suas finanças. Para ser honesto, não foi comprado de livre espontânea vontade, mas por pressão (pressão mesmo) de um colega de trabalho preocupado com os gastos excessivos que faço diante da minha difícil, mas passageira, situação financeira. No dia, tinha outros seis livros a mão e me permiti levar o Me Poupe. Contudo, já tinha ouvido falar tanto da obra quando da autora. Por estar conectado à rede, acessei rapidamente o canal dela no YouTube. Cheguei a fazer minha inscrição, mas não tive coragem de ver um vídeo sequer. O medo? De ouvir certas verdades inconvenientes.

Entretanto, há forças, que costumo chamar de destino, sempre dispostas a nos expor na face àquilo que temíamos. Então, de posse do Me Poupe, comecei sua leitura. Como a autora diz, o livro pretende ajudar a quem não sabe cuidar do próprio dinheiro. O livro é curto, de linguagem levíssima, até com uma dose de humor um tanto bobo (para o meu paladar), e repleto de dicas, muitas até praticadas no próprio livro, para que possamos rever os erros que cometemos com as nossas verbas e aquelas que pretendemos ter. Há indiscutivelmente muita pessoalidade no livro, talvez para aproximar o leitor de um panorama resolutivo de suas dividias. Em boa medida isso funciona, porque exemplos precisam ser partilhados e copiados, mas noutros, não.

Digo isso e já antecipo a primeira falha do livro: sua visão elitista das finanças. Isto porque, Arcuri se mostra imbuída das melhores intenções - e não estou duvidando disso -, certamente há nela um propósito maior do que apenas vender livros ou fazer seu canal no YouTube ganhar novos seguidores. Por essa iniciativa, sua escrita já merece meu respeito, sobretudo numa nação onde pouco se discute sobre economia com os mais necessitados. Porém, sua falha está na disparidade social que é uma das responsáveis pelo endividamento populacional. Sua origem, apesar de não ser em berço de ouro, está distante da dê muitos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês. Ou seja, para quem leu a obra, sabe que mesmo com dificuldades, ela conseguiu ter uma base satisfatória para poupar, diferente de muitos de nós.

Também considero exagero algumas medidas tomadas por ela para poupar dinheiro, mas isso diz muito da perspectiva de vida dela que desde menina tem esse espírito empreendedor. A minha discordância reside nas proporções as quais poderiam ficar mais equiparadas se fosse levado em consideração outras questões econômicas não citadas na obra: a desigualdade social, étnica e de gênero que assume proporções significativas na economia, ou não, de muita gente. Quando estes prismas são elencados, e devem em se tratando de um país cuja renda populacional atravessa estigmas históricos sociais incontestáveis, as dicas de Arcuri ganhariam proporções ainda maiores do que já ganham.

Fora isso, fui lentamente simpatizando com as suas dicas, algumas coloquei em prática logo após ler as primeiras páginas. Achei massa essa interatividade e a simplicidade com que ela trata termos técnicos do campo financeiro. Facilitar a compreensão de certas nomenclaturas ajuda muito na hora de não entrar numa roubada com o banco. Entre eles, o juro composto foi o que me chamou mais atenção. Não fazia ideia (eu, e como ela disse, muitas outras pessoas) de que havia alguma positividade na palavra juros. Sempre os vi como inimigos, que por sinal tem me acompanhado nos últimos meses. Entretanto, mesmo sem condições no momento de investir, me senti tentado com essa possibilidade num futuro próximo.

Além disso, as reflexões trazidas por ela são no mínimo interessantes. Nos mostram as falhas que cometemos a comprar coisas por impulso (eu sou desse time), o que podemos fazer para controlar essa impulsão, investir, poupar e assegurar alguma grana para o futuro. Esse para mim foi o lance maior de Me Poupe, projetar um amanhã. Faço parte do grupo de milhões que afoga as mágoas nas compras, que se endivida a longuíssimo prazo e não tem qualquer controle sobre as próprias finanças, ou seja, um paciente financeiro difícil, às vezes até irremediável. Todavia, com o tempo, a maturidade e as quedas, estou paulatinamente revendo essas falhas. Por sorte, comprei à força o Me Poupe e sinto que não serei mais o mesmo após ele. Na verdade, ninguém é o mesmo após ler qualquer livro. A palavra e a mudança são agentes transformadores da vida.

Portanto, o Me Poupe de Nathalia Arcuri é um livro interessante, e só. Não resumo a isso como forma de menosprezo, mas porque foi o meu primeiro contato com esse tipo de leitura, logo, precisarei de outras para escolher outro adjetivo para ele. Claro, sou um desajustado das finanças e por essa razão contumaz a mudanças nesse campo. Precisaria de algo profundamente tocante para rever bruscamente os meus defeitos. O que Arcuri me proporcionou ao ler seu livro foi a chance de aplicar parte de suas dicas a minha realidade financeira guardadas as minhas proporções atuais. Talvez em um futuro próximo eu precisarei revisitar suas páginas para tirar novos proveitos de suas instruções. Até lá, Me Poupe me parece um bom guia para encontramos ao nosso modo os caminhos para escapar das armadilhas que a “dinheirofobia” incute sobre nós.
Certas épocas em nossas vidas determinam o curso de nossa história. De tal premissa, depreende-se uma verdade incontestável, embora, na adolescência, mais precisamente em sua transição, haja maiores movimentos de corpo, mente e alma-, que noutras etapas humanas. Talvez também isso se dê devido ao turbilhão de sentimentos que nos eleva, todos alheios a nossa vontade, em boa medida, contudo, contributivos a formação da nossa personalidade. Em meio a isso, percebi que Amiga Genial, de Elena Ferrante, transcorre por essas águas nebulosas onde a juventude navega à deriva, mas também nos precede uma história de convivência, descobertas, alianças, dissabores e transformações para além dos ímpetos hormônicos da adolescência.

Enquanto obra, Amiga Genial possui algumas características semelhantes a Dias de Abandono do ponto de vista estrutural, embora este último tenha um detalhe a mais o uso falarei logo adiante. Afora isso, o livro é disposto em parágrafos curtos os quais dão uma fluidez a leitura. A escrita envolvente de Ferrante é outro detalhe a ser mencionado: o cuidado vocabular, sem preciosismos desnecessários nem empobrecimentos pretensiosos. Tudo o que está ali está por uma razão, e é compreensível numa leitura não tão atenta. Chama atenção ao artifício do título. Este aparece uma única vez em todo o livro, um recurso da autora para que Amiga Genial seja entendida por si só em sua narrativa. Funcionou!

A priori, as primeiras páginas me deixaram aflito pela quantidade de personagens, bem como a descrição de cada qual no enredo que iniciara. Juguei precipitadamente que aquilo poderia turvar a compreensão do todo, que conflitaria a história ao ponto de figurar negativamente qualquer interpretação. Contudo, infelizmente, estava enganado. Ao longo das páginas, todas aquelas pessoas conseguiram alocar-se no enredo sem confundir este raso leitor, graças a forma, reitero, precisa da escrita de Ferrante. Ainda no quesito estrutural, Amiga Genial tem um ritmo com poucas variações, apesar de instigante. Começa morno, complacente e depois ganha nova temperatura, mas nada quentíssimo a se intitular com clímax. Vou classificá-lo como semi-quente, mas ainda incorrerei a imprecisão.

Continuo a me impressionar com a capacidade de Ferrante em dar roupagem elegante a enredos batidos. Neste, a história de duas amigas, aparentemente distintas em personalidade, se desenrola da infância, perpassa a adolescência e beira os primeiros degraus da vida adulta delas. Entrementes, os conflitos que as envolvem são conhecidíssimos de todos nós, embora, guardada as devidas proporções de tempo e espaço, (a história se passa em Nápoles em meados dos anos 1950), tudo redimensiona para um clichezão, desfeito pela construção linguística de Ferrante, a qual não nos deixa brecha para criticar, tão pouco encontrar indícios claros de que o clichê está presente, mesmo estando ali desde o início.

No entanto, ao retomar Dias de Abandono, meu primeiro contato com Elena Ferrante, é impossível não fazer comparações, mesmo ciente de que Amiga Genial inicia a tetralogia que certamente lerei mais adiante. Por ora, compararei o que senti em abundância em minha primeira leitura de Ferrante e senti falta aqui: o traço psicológico dos personagens. Lá, mesmo distante de mim em enredo, a narrativa me prendeu loucamente, ao passo que, em muitos instantes, senti a dor daquela personagem abandonada pelo marido. Esse quesito imersão ocorreu também em Amiga Genial, mas em menor proporção, embora, devo admitir, sua história é bem mais próxima da minha realidade.

Nesse sentido, é preciso destacar o quão envolto eu fiquei ao ler diversas passagens da vida de Elena e Lila. De cara, me vi transfigurado em uma das partes, porém, ao longo das páginas me vi transplantado nas duas, o que me inquietou. Talvez tenha sido este outro recurso de Ferrante, não criar mocinhos nem vilões, mas humanos em seu maniqueísmo mais puro, a adolescência. Por isso me permiti regressar a minha juventude quando, em boa medida, fui Amiga Genial de alguém e também seu espectador, nem sei mensurar o quanto de ambos, é nem vem ao curso. O que sucinta é o regresso a essa época quando as descobertas pouco tem espaço para serem experimentadas e são rapidamente suprimidas pela ânsia da vida adulta.

Seja como for, Amiga Genial é um bom livro, mas não é o melhor de Ferrante, como apregoa os muitíssimos críticos da internet. Na minha incipiente opinião - passível é aberta à discussão - Dias de Abandono é mais impactante. Todavia, precisarei ler o restante da tetralogia para legitimar essa minha precipitada colocação. Conquanto, volto a reafirmar isso, é preciso ler Elena Ferrante. Primeiro porque ela desconstrói aquela menção elitista de que a literatura contemporânea é pobre, por essa visão generalizante, perdemos leituras agradáveis como essa. Segundo porque é no mínimo interessante ver o malabarismo - e não leiam isso de forma pejorativa - que a autora ressignifica os nossos clichês. Por último, após ler Amiga Genial ou melhor, Ferrante, certamente, com doses peculiares de empatia, teremos o prazer da retomada as nossas bases por meio de uma leitura mais leve.

10 novembro 2019



É preciso guardar bem na memória a data de hoje: 8 de novembro de 2019. Neste dia, o verdadeiro presidente do Brasil ganhou a liberdade. Vítima de um processo criminal inegavelmente duvidoso, Lula foi sordidamente preso às vésperas de concorrer à presidência da república, fruto de um esquema golpista mais bem elaborado na história do país. Diante disso, fomos intoxicados com uma conjuntura política das mais abjetas já vistas nos últimos anos. Porém, a soltura de Lula representa o fôlego que nos faltava para respirar diante da atual atmosfera asfixiante que sufoca o Brasil. Sua liberdade carrega em si a de outros brasileiros encarcerados com ele pela sanha controversa de um projeto político conservador, o qual deu seus primeiros passos no golpe à Dilma Rousseff e teve seu apogeu no atual governo.
Entretanto, o país que Lula vai enfrentar é completamente distinto daquele antes de sua prisão. Divididos em uma polarização, orquestrada em boa medida pela mídia, o Brasil mostrou sua face retrógrada por meio de uma retórica desumana da governança vigente. Assim, o cidadão de bem, o pai de família, o homem fervoroso temente a Deus, aquele que se encaixava nesses e noutros clichês pacifistas, praticamente inexiste. Na realidade, muitas facetas ditas humanistas ruíram diante dos gritos pelo armamento social; pela exaltação de frases como “bandido bom é bandido morto”; pela criminalização da juventude pobre e negra; pela supressão de direitos sexuais de mulheres e gays; pelo desrespeito aos idosos; pelos ataques e negligências ambientais da Amazônia ao litoral do nordeste; e, sobretudo, pela perseguição a cultura, bem como ao saber democrático alicerçado na figura de Paulo Freire.
Tudo isso feito através de mãos em formato de armas abençoadas por setores religiosos bilionários – leia-se Record- e por nacionalismos elitistas disfarçados de patriotismo – o velho da Havan é uma prova disso. Em meio a essa turbulência, Lula vai precisar reorganizar os discursos da esquerda, perdidos na última eleição, bem como silenciados pelo estardalhaço feito pelo clã Bolsonaro na política. Necessita ser mais ágil do que as Fake News que ainda fazem parte da plataforma bozo de atuar. Para isso, urge adentrar nas redes sociais para fazer o oposto do que tem sido feito pela presidência. Também é crucial arregimentar eleitores incrédulos frente ao descrédito dado ao PT nos últimos anos. Há muitos, inclusive, que se bandearam para o lado inimigo porque, desesperançosos com o cenário nacional, apostaram, e alto, em um candidato cuja proposta política, nitidamente absurda, saciava os anseios populacionais e ainda prometia acabar com a corrupção. Tamanho milagre sebastianista não só não ocorreu como as falcatruas envolvendo a consanguínea família Bolsonaro estão paulatinamente vindo à tona, para além da corrupção: Marielle, PRESENTE!
Será um trabalho árduo, digno de alguém cuja frase de Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, serve à carapuça. Lula é, antes de mais nada, a resistência de um povo que não quer ser emudecido pelos brados intolerantes de um candidato claramente despreparado para estar no poder. Ele, o nordestino que ganhou o mundo, representa a diversidade ignorada pelo atual governo. É a face da pluralidade que ganhou espaço em vários setores sociais, mas agora está sendo marginalizada por um ser preocupado em atender os interesses de pequenas parcelas historicamente privilegiadas da nação. Lula deverá reorganizar a única balbúrdia visível nos últimos anos: a ascensão meteórica de um candidato que na vida política não fez absolutamente nada de produtivo para a sociedade, mas conseguiu alcançar o cargo mais importante do país de forma inescrupulosa, em uma pátria onde a corrupção é fichinha diante dos arremedos da politicagem. Será penoso o regresso a um modelo político dantes em equilíbrio, porém, o primeiro passo rumo a isso foi dado. Agora, vamos à Luta com Lula para Libertar o Brasil!

15 outubro 2019



As palavras professor, profissão e prostituição não iniciam com as mesmas três primeiras letras à toa. Não há nada mais vulgar do que ensinar em um país que prostitui os nossos conhecimentos e paga quase nada por isso. Quem lucra com esse prostíbulo do ensino é o atual governo, que historicamente cafetão, goza muito ao usar de nossos serviços, mas não nos legitima para a sociedade. Professor virou a meretriz do Estado, muitas vezes contaminado por doenças contraídas pelo estresse na sala de aula, salários mal remunerados, violência escolar, e todos os demais fetiches dos quais estamos submetidos.

Somos responsabilizados pela mal resolvida situação sexual da educação nacional. Careta e conservadora, o saber agora limitou-se ao papai e mamãe apregoado pelas igrejas que ditam os rumos da política do país. Contudo, nos bastidores do poder, precisamos transformar a sala de aula em kama sutra, pois é necessário driblar a sociedade modelo recatado e do lar no aprendizado, ao mesmo tempo que incorporamos a Bruna Surfistinha para motivar os alunos e desconstruir as incoerências sociais.

Para estes, não basta explorar nossos corpos das várias maneiras possíveis em sala de aula, seja como conselheiros, seja como aqueles que vão servir de acessório para os desejos mais lascivos envoltos a xingamentos, violência física e muitas vezes assédio. Muitos, porém, usam a rede para prostituir nossos serviços. Em um misto de vigilância e questionamento, a internet passou a ser o novo bordel, onde o aluno nos compara com outras ferramentas, sempre mais atraentes e tentadoras. Assim, somos inferiorizados no ato a dois, ou grupal, já que o mais comum é o sexo coletivo nesse modelo de aprendizado com salas de aula abarrotadas de clientes que deixariam a categoria orgia do Xvideos no chinelo.

Há também quem filme a nossa didática em sala de aula para expor nossos esforços de levar prazer a esses desafortunados, numa espécie de sexting educacional. Não suficiente, projetos políticos controversos como a Escola Sem Partido querem ainda ilegalizar a liberdade da nossa profissão, que durante anos satisfez a devassidão social, levando um pouco de esperança para as relações frígidas da sociedade. Sem representatividade sindical, social, política e cultural, a ilegalidade serve de extra para estes profissionais. Muitos de nós vendem seus atributos na rua, a preço de banana, em cursinhos, isoladas, preparatórios, atuando em três turnos todos os dias da semana. Se isso não for se prostituir, na pior das hipóteses é exploração sexual.

Desnudos, ficamos vulneráveis também fora dos espaços escolares. Isto porque, a família nos usa como um puxadinho, como aquela crioula do tempo da escravidão que tinha sexo "consentido" com o senhorzinho branco e conservador. Hoje há a mesma lógica: satisfazemos os desejos de muitos pais que entregam em nossos braços as taras dos seus filhos, todas ligadas a negligência parental, para suprir as volúpias de ambos nem sempre ligadas ao conhecimento. Então, semelhante ao passado, todos os envolvidos sabem que há uma clara relação erótica perversa no ato, mas ignoram isso em nome da satisfação luxuriosa de repassar ao outro a incumbência do gozo pessoal.

O reflexo disso não poderia ser outro: uma sociedade mal resolvida, sexualmente e educacionalmente, escravizando profissionais sérios cujo papel só é lembrado, de relance, no dia 15 de outubro de cada ano, quando, na verdade, estamos presentes em cada bem sucedida história de sucesso da sociedade, mas continuamos sendo tratados como putas por todos aqueles que sabem do peso da nossa existência. Isso também resvala no alunado, que finge ares de libidinagem, porém, em essência, saí sem tesão da escola em busca de azulzinhos para se inserir na suruba que lhe espera, de preferência excitado, na sociedade.

Mesmo assim, ainda acalentando a fantasia nacional de que somos responsáveis pelo apetite sexual do aluno pelo conhecimento, fingimos orgasmos por meio de dados mentirosos sobre os nossos clientes, os quais chegam em sala de aula carentes de muita coisa para além do saber, mas saem com a libido destruída frente a brochante conjuntura educacional do Brasil.

Portanto, não dá mais para tangenciar essa realidade. A educação não pode ser tratada como uma transa casual, irresponsável e inconsequente, prostituindo indivíduos que poderiam ganhar bem mais do que o prazer efêmero de um gozo em forma de aula. Da mesma forma, caso fôssemos valorizados para além de hoje, o professor teria o deleite sobre um ensino onde o sexo e o amor estariam em sintonia para suprir as carências dentro e fora dos espaços escolares. Entretanto, enquanto nos pagarem mal, usarem nossos corpos e cobrarem regalos para além do que podemos oferecer, nada vai mudar. Não haverá pílula ou afrodisíaco que dê jeito. A solução é clichê: investir em nós professores. Do contrário, a cada 15 de outubro, todas as vezes que me perguntarem qual é a minha profissão, eu direi professor prostituto.